23 Horas

24 Horas

23:45

Com o passar dos anos, Kátia aprendeu a reconhecer quando começava a
perder o controle. Invariavelmente sua voz descendia meia oitava e ela
deixava o estágio de amarfanhar uma ponta de pano qualquer para enrolar
e desenrolar uma mecha de cabelo no indicador. O ir e vir da mecha negra
erea o cronômetro do tempo que faltava até o descontrole final, algo que
poderia eclodir sob a forma de um acesso de fúria ou de lágrimas, o que,
de toda maneira, refletia a raiva exacerbada.
Bordejava aquele estado milítrofe há uns bons minutos, quando tudo
explodiu de uma vez só. Frases que jamais deveriam ser sequer
sussurradas, escaparam do seu peito. Soube que fora longe demais quando
os olhos de Eduardo se tornaram intensos, a indignação rutilando,
emprestando-lhe um brilho assustador ao influxo da luz pálida que vinha
do relógio digital.
O silêncio caiu entre eles, mas estava longe de ser misericordioso.
Pelo contrário, exibia todos os caracteres da calmaria que precede uma
temível tempestade, aquela que teria o poder de varrer tudo quanto
encontrasse a sua volta.
Ao cabo de alguns instantes ele falou, a voz baixa e controlada de
quem não deseja gritar.
- Eu quero o divórcio.
Kátia esperou. Nada mais. Parou de olhá-lo. os olhos castanhos
pousaram na geladeira. Ímãs de geladeira. Uma bruxa com uma vassoura.
Talvez tivessem comprado isso no primeiro ano de férias. Catálogo de
lanchonete, telefone de farmácia, propaganda do gás; uma lembrancinha
tosca que Júlia trouxera da escola, no ano anterior; uma ou duas fotos
de bebês lutavam para ter espaço entre artesanatos da Bahia, propagandas
de cerveja e uma infinidade de quinquilharias.
Assombrada, Kátia percebeu que havia uma história permeando cada um
daqueles objetos. Mais sério ainda: percebeu que cada uma daquelas
coisas fizera parte da sua história com Ed. Por que isso a
impressionava? Ao todo tinham sido quinze anos. Quinze anos
turbulentos, mas, indiscutivelmente , quinze anos.
- Você não pode estar falando sério. - Ela falou para a geladeira,
mas ainda assim, foi ele quem respondeu.
- O que temos de bom? Apenas fazemos mal um ao outro e depois...
Depois teve o que você disse... Isso sem contar com o Jair.
Colocou a mão sobre um bonequinho de gesso e começou a arrastá-lo
para baixo, para baixo, para baixo, empurrando, assim, todos os que
estavam antes dele. Um a um, os enfeites foram escorregando,
simultâneo às palavras de Kátia para a geladeira.
- Você não pode ter levado a sério isso. Foi uma viagem da empresa,
nós estávamos brigados. Talvez eu tenha bebido demais.
- Sem nenhuma dúvida eu já bebi demais - confessou, triste -, mas
nunca foi motivo para que eu tivesse outra mulher.
- Olha, Ed, desculpa, eu exagerei, eu posso...
- Já passou da meia-noite, Kátia. Dorme e depois a gente decide o
resto.


05:30

Kátia realmente tenta acordá-lo, mas ele parece estar disposto a fingir
um sono imperturbável eternamente. Pouco depois, completamente arrumada,
prepara o café da manhã. Só então acorda Júlia, que reluta em
sair da cama e precisa ser sacudida várias vezes.
Comem juntas em silêncio, enquanto a televisão, na cozinha, entre
ambas,
despeja as notícias da manhã.
Poucos minutos mais tarde, as duas caminham juntas, rumo à
parada de ônibus. Espera curta, chegada do transporte. Entram. Sentam-se
separadas. Descem bons minutos mais tarde. Despedem-se de forma
maquinal na
esquina da escola. Kátia pergunta-se como lhe contaria do divórcio. Por
algum motivo, sabe que a decisão do marido é irreversível. Censura-se
por Jair e muitas outras aventuras anteriores, ao tempo em que execra a
falta de compreensão do esposo. -
Chega à empresa e funde-se à pequena multidão de funcionários.
Assume seu posto e trabalha por toda a manhã, tentando vigorosamente
afastar um outro assunto da sua cabeça. Não adianta.
Na hora de almoço, renuncia a uma porcentagem dela para pegar um
ônibus e dar uma passadinha no laboratório. Retira o exame e abre-o,
expectante e assustada. Positivo. Suspira e enfia o papel na bolsa.
Entra no banheiro e chora.
Trabalha todo o resto da tarde. Pergunta-se se o filho é mesmo de Ed
e se ele também fará o mesmo questionamento.

19:15:
Está presa em um engarrafamento. O coletivo praticamente não se
mexe. Ignora se a mãe lembrou de buscar Júlia na escola.

21:00

Finalmente entra em casa. Ed ainda não voltou do serviço. Sua mãe a
espera na porta. Júlia está doente, precisa de remédio.
Kátia entra em casa e encontra a filha. Parece ainda menor que da
última vez que a observou bem. Os seus olhos são velhos, mas a aparência
denuncia menos que seus seis anos de vida. Um abraço no silêncio, o
exame se mexendo na bolsa, a menina enrolada em dois cobertores.
Sai outra vez, procurando uma farmácia. Fechada. Apenas poderá
dispôr de uma 24 horas. Uma drogaria aberta em tempo integral dista dois
ônibus dali.
Kátia abre a bolsa, pega a carteira, conta as notas, e finge não ver
o papel do exame sorrindo para ela.

21:45

Entra na farmácia. Apenas ela, um funcionário e outra compradora.
Kátia aproxima-se do balcão e pede o remédio ao vendedor indiferente,
simultâneo à entrada de dois potenciais consumidores no estabelecimento.
O remédio desliza da prateleira; dinheiro magro troca de mãos e um
tiro é dado para o alto.
Todos os olhos encontram uma arma, uma mão, um dos recém-chegados.
Nada demais, só outro assalto.
Kátia maquinalmente olha para fora, esperando um socorro miraculoso
e recebe como resposta apenas a luz distante de um poste.
Os rapazes se sentem insatisfeitos com o dinheiro disponível no
caixa. A frustração sobe-lhes em ondas espiraladas desde o fundo do
estômago. Retiram a bolsa de Kátia, não encontrando nada ali além do
dinheiro para o ônibus e cinco centavos referentes ao troco do remédio.
Voltam sua atenção para o medicamento na mão dela. O líquido desliza para o chão, caindo
em gotas grossas como lágrimas silenciosas, talvez as lágrimas que Kátia
desejara ter chorado aos pés da geladeira, quase 24 horas antes.
O funcionário não é descriminado. Chutes, agressão gratuita, um tiro
certeiro na cabeça. Aparentemente, sua carteira oferecia tanta
dificuldade quanto às magras posses da mulher.
Sob os olhares anônimos dos transeuntes ocasionais e apressados, a
farmácia foi pilhada, Kátia colocada em um canto, proibida de se mexer,
enquanto a mulher era empurrada para o banheiro, os passos trôpegos
como os da mãe de Júlia no encontro com Jair..
De relance, o papel do exame no chão.

23:00

Por algum motivo desconhecido, um carro da imprensa local aparece
nas imediações. Entrevistam os rapazes irritados, entrevistam Kátia.
Os policiais chegam para as negociações. Realmente, os consumidores em
potencial precisam ser apaziguados. Fazem exigências, ameaçam
explodir a farmácia.

23:40
Kátia pensa na febre da menina. Imagina se o jornalista enviará
um chamado urgente, para que alguém verifique a doença de Júlia. Por
algum motivo, duvida que a mãe possa se dedicar muito a isso, com
ela aparecendo na televisão. O exame olha para ela, agora pisoteado.
Tudo é rápido e sem remição, quase como sua explosão de fúria
na cozinha, noite passada. Decide pegar o exame: teme que algum curioso
o veja, por mais absurda que pareça a hipótese.
Um dos rapazes interpreta isso como reação ao assalto, fica ainda
mais nervoso e atira.
O exame, Júlia, Ed, Jair, as gotas grossas do remédio no chão: lágrimas
que ela não chorará jamais.

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