Nos braços do Cristo

Fiquei surpresa ao resgatar este conto, diretamente dos escombros do que sobreviveu ao ano de 2002. Podia ter sido pior.

Nos braços do Cristo

Sou secular. Vim de tão longe, que mal sei de onde saí. Da infância,
lembro-me de grandes pátios, uma vontade enorme de ir embora e muito,
muito trabalho. Lembro-me também da minha mãe, negra e bonita,
mexendo enormes taxos de doces no fogão a lenha. Depois, um padre me
ensinando a ler, fazendo o que ele dizia ser sua boa ação do ano.
Ao contrário dos que dividiam a senzala comigo, eu tinha pele,
cabelos e olhos claros, por causa daquilo que soube mais tarde chamar-se
infidelidade senhorial. Para ser mais exato e hirônico, chama-lo-hia
subjulgação ou, para ser mais cru ainda, estupro. Do ingenho enorme, a
melhor lembrança que guardo é da minha mãe. Foi meu primeiro e mais
verdadeiro amor, possivelmente porque era simples.
Anos mais tarde, fui vendido. A lembramça dos seus olhos secos,
acompanharam-me por todo esse tempo e, quando tornei-me vampiro,
foram esses mesmos olhos que me impediram de infrentar o Sol um milhar de
vezes, quando a eternidade parecia-me insuportável e fria de mais.
Alimentáva-me do sangue dos maus e tentava ser bom, não porque
fosse digno, mas porque assim corria menos riscos de desaparecer nas
mãos de algum inimigo. Além disso, havia um fato que já, já te conto.
Participei de muitos clãs durante os anos seguintes.
Estive nas campanhas da segunda guerra mundial, acompanhando todos
aqueles homens que lutavam sem sequer saber porquê. O problema dos
grandes sempre afoga os pequenos e isso eu compreendi desde cedo.
Meus conhecimentos do iluminismo, revolução francesa e guerras mundiais
embeveceriam quaisquer estudantes de história deste mundo. graças à
faculdade de transporte ultra rápida dos vampiros, eu pude presenciar a
alguns esses acontecimentos de perto, sem, contudo, ser de qualquer
utilidade. Predador um dia, predador para sempre, e deixe que
te diga que a eternidade é um tempo muito longo. Ao menos, costumava
ser. As coisas mudaram muito desde que conheci Talita.
Dizem que todo homem, por pior que seja, encontra-se, uma vez na
vida, frente a frente com a virtude.. Dizem mais: falam que essa virtude
apresenta-se-lhes em forma de mulher. Acredite: esta é uma história
verídica.
Ao longo dos anos, conheci muitas mulheres que deram-me o melhor ou
o pior de si, dependendo delas mesmas e das circunstancias. Entretanto,
nenhuma é tão especial e encantadora quanto a minha Talita.
Sua vida, seus quinze anos, estão muito aquém desse papo sério de
eternidade, senzalas, vampiros sugadores de sangue e cadáveres
dilasserados nos canais. Sua vida consiste em ajudar a mãe com o
jantar, ir à escola, telefonar às amigas, tentar recuperar uma nota
baixa, andar de patins aos finais de semana, e, claro, aproveitar os
encantos do seu primeiro namorado. É capaz de adivinhar quem é o
felizardo? Sou eu. Eu que, pela primeira vez, queria ser apenas um
adolescente espinhento que procurasse ganhar coragem para convidá-la a
dançar no baile da escola; eu que fico atordoado com a sua sensualidade,
que parece quadriplicar simplesmente com o fato de ela ignorá-la;
eu que me perco na cascata noturna que acaricia

seus ombros, uma cascata de fios perfeitos e muito macios, como um
halo de pureza a envolvê-la; eu que derreto-me ao som da sua voz alegre,
feminina e quase infantil; Eu que deixo meu espírito deslizar para
esferas alvas com a simplicidade delicada da sua voz; ela que, de tão
rosada, tão perfeita, meiga e singela, fez renascer o que havia de
melhor em mim.

Encontrei-a uma noite dessas. Seu ônibus havia atrazado e ela
estava tentando voltar a pé para casa. Eu, faminto, procurava alimento.
Vi-a. Pensei no seu sangue fluindo para mim, mas, ao aproximar-me, percebi
que seria incapaz de fazer-lhe mal. Contrariando meus instintos, decidi
protegê-la, ser um bom amigo, qualquer pessoa inofensiva que estivesse
sempre por perto para ajudá-la. Acompanhei-a até a casa e, em pouco
tempo, fiquei sabendo tudo a seu respeito. Encantou-me o mundo simples e
seguro que ela tinha, a sua bondade natural e a receptividade que tive
no seu coração. Poucos meses mais tarde, ela escreveu-me uma carta de
amor e começamos a namorar. Agora, finjo que sou um rapaz de vinte e
poucos anos, que faço universidade em outra cidade e apareço todas as
noites para namorá-la, no aconxego do seu lar.

Sei que essa situação não pode estender-se pela eternidade. Um dia,
quando ela estiver mais velha, pretendo contar-lhe tudo e, se ela não
me quiser mais, sairei do seu caminho tão rapidamente como entrei,
agradecido por tudo de bom, puro e sincero que partilhamos juntos.

Nesse momento, estou indo vê-la. Você, caro leitor, de certo ficará
encantado com ela, tanto quanto eu. Verá que anginha ela é...
Primo a campainha. Sua irmã vem abrir a porta.
- Olá! - Digo, oferecendo-lhe aquilo que tentava ser um sorriso.
- Oi, João. Tudo bom? A Talita não está.
- Como assim?
- Foi com umas amigas lá pelo Cristo Redentor.
- faz muito tempo isso?
- Que nada! Deve estar já voltando. Recebeu um telefonema, disse
que ía para lá e não se demorava. Quer entrar e esperar um pouco?
Mamãe fez creme de abacate.
- Não, Camila. Muito obrigado. Vou encontrá-la. Voltamos para casa
juntos em breve, tudo bem? Guarde creme para dois.
Dizendo isso, despedí-me e me afastei, usando meus poderes na
esquina para chegar mais rápido ao lugar indicado. Vampiros ten os
sentidos mais desenvolvidos, embora possam escolher quando usam essa
faculdade. Ao aproximar-me, abro ao máximo os meus canais senssitivos.
Não quero ver mal nenhum rondando a minha Talita. Tenho que protegê-la,
lembra? Meu coração está feliz, agora. Vejo-a. Está linda na sua calça
geans e na sua camiseta. Seus cabelos voam com o vento, como asas
delicadas de um pássaro gracioso. Ela está conversando com alguem. Não
conheço este moço. Será que está importunando-a? Vou dar uma lissão
nele! É capaz que eu me alimente novamente essa noite só para lhe ensinar
uma lissão. Mas, antes, melhor ser calteloso. Às vezes é apenas um
amiguinho da escola. Eles conversam.
- Talita?
- Eu tenho namorado, Do.
- E daí? Você já fez isso antes.
- Mas....
- Se você não quer, eu vou embora e não te atormento mais.
- Não, Do... Eu sempre gostei de você.
- E no entanto vive aos beijos com esse ilustre desconhecido.
- Não é um desconhecido!
- Claro que é!
- Do, não faz isso! Eu sempre fui louca por você.
- Foi, é?
- Sou.
- E o desconhecido?
- Foi só para te provocar.
- Então, conseguiu seu objetivo, doçurinha.
Agora ele a abraça. Não, eu não estou vendo isso! Não pode ser
isso! Ela aproxima-se mais. Turistas passam por eles.. No alto, o
Cristo redentor, imponente e bom, assiste a esta traição. Eu, também no
alto, não sei o que fazer. Eles se beijam.. Ela beija-o. Despenteia
seus cabelos e beija-o. Diz-lhe palavras de amor que nunca me disse e
beija-o. cobre seu rosto de beijos e abraça-o. De repente, afasta-se.
- Agora tenho que ir, Do.
- Mas por quê?
- O "Desconhecido" deve estar lá em casa, esperando-me.
- Vai terminar com ele?
- tenho que ir com calma. O coitadinho é tão apegado a mim que...
Isto é de mais! Tremo. Quero me queimar no sol. Quero nunca
existir. A minha Talita está fazendo isso? A minha pura, doce e meiga
talita? Após a surpresa, vem a raiva. Isto não pode ficar assim.
**

Eu era pouco mais que um neófito quando soube que a escravidão
acabou. Tinha pouco mais que um caixão de meu, mas faria o possível
para ter minha mãe junto de mim, para poder dar-lhe o mínimo de
conforto e o máximo de assistÊncia possível.
Por isso, dirigí-me ao ingenho disposto a levá-la comigo. NO
caminho, vislumbrei uma fila de miseráveis, todos pretos, anônimos,
êx-escravos que não tinham para onde ir. Atrás de todos eles, estava uma
velha muito maltratada pelo tempo e pelos árduos trabalhos que lhe
impuseram desde muito menina. Aproximei-me, penalizado. Tinha que
ajudá-la. Ao olhá-la de perto, tive um choque: era minha mãe. tornei-me
visível e oferecí-me para ajudá-la com a pequena trouxa que carregava.
Ela parou de andar, ficando ainda mais para trás na fila. Depois,
fitou-me demoradamente e seus olhos espelharam um reconhecimento que eu
jamais teria esperado.
- João, meu filho!
Dizendo isso, sentou-se no chão de terra batida, quente e árida.
- Eu sabia que você viria.
- Vim buscá-la, mãe. - Foi a primeira frase que me ocorreu.
- O Senhor já vem me buscar, João.
- Como assim?
- Que bom que nos encontramos! Você vai ser bom, não vai?
- Sim, mãe. E eu vim buscá-la! tem umas coisas que a senhora
precisa saber, mas..
- Só me prometa que vai ser bom.
- Eu vou ser, mãe.
Ato contínuo, sem saber bem por qual motivo, abracei-a e ela
expirou nos meus braços.

**

Ser bom é algo que está além das minhas possibilidades nesse
momento. Agora, sou todo frieza e maquinação. Observo a garota próxima
ao Cristo redentor. Passam muitos turistas, mas eu não os vejo. Ela se
despede e beija seu novo namorado. Vira-se de frente e eu torno-me
visível, aparecendo por trás dela.
Toco-lhe o ombro com suavidade.
- Tali?
Ela vira-se. Parece perturbada.
- João? Há quanto tempo está aqui?
- Acabei de chegar.. Por quê?
- Nada, não. Só perguntei.
Vamos pra casa?
- Sim, vamos. Hoje tem creme de abacate.
- Ah, sim? Você passou lá?
- Foi o que combinamos. Mas, antes, quero te mostrar uma coisa.
Como já te disse, talita ignorava por completo a minha natureza
sobrenatural. Entretanto, nãO PODERIA APENAS MATÁ-LA, NÃO É? aBRACEI-A
COM FIRmeza e delicadeza.
- "Você vai ser bom, não é? " - "HOje, não, mamãe. Hoje, não."
Com minha mente, fiz com que ficássemos invisíveis e começamos a subir.
- João, o que é isto?
Celei seus lábios com um beijo delicado e pacífico.
- Uma surpresa, minha prenda.
Ela estava atônita, mas logo depois deixou de raciocinar e
começou a olhar a Cidade Maravilhosa do alto.
Abracei-a novamente e deixei que meus dedos se perdessem na meiguice
dos seus cabelos. Sem desmanchar o gesto de carinho, comecei:
- Por que você fez isso, tali?
- Isso o quê? - perguntou ela, parecendo confusa.
- Beijou aquele outro.
- Ah... Ele... Ele me forçou...
- Não mente pra mim, tali.
- Mentindo, eu?
- tali, eu sei de tudo.
- João, você está me assustando.
Ficamos deitados no ar. Beijei-a novamente eprocurei seu pescoço.
Uma expressão de medo e surpresa refletiu-se nos olhos dela quando
sentiu a mordida e a dor lancinante. Não se debateu nem gritou.
deixou-se ficar. Provavelmente pensava que sobreviveria.
Seu sangue quente passava para mim. De repente, tornou-se mais
inerte. Seus cabelos tremeluziam como asas de um pássaro moribundo. Suas
mãos, flácidas, pendiam para os lados do corpo. Estava tudo acabado.
Olhei para baixo e avistei o Cristo redentor. Sem pensar muito,
desmanchei o abraço, fazendo com que seu cadáver deslizasse, passasse
entre os braços do Cristo e caísse pesadamente no chão de pedra.

2 comentários:

  1. um titulo tão bonito com um conteudo tão deprimente. pensei q leria algo de jesus, mas era de vampiro, traição e assassinato a sangue frio. pq n tira o nome de jesus do meio? isso devia ser nos braços do demônio, isso sim!

    ResponderExcluir
  2. Um, você está certa. Vou escrever um homônimo com um conteúdo mais digno do título.
    Em minha defesa, só posso dizer que escrevi isso 7 anos atrás. :-)
    Se um dia voltar, vejamos que achará do que escreverei para você.

    ResponderExcluir