Plantação de mortos

Plantação de mortos

Era uma vez um homemcujas idéias esfervilhantes não podiam ser
contidas no quartinho pequeno em que passou sua infância e adolescência.
Por lembrança singular, guardava o timbre terno, o
toque suave e firme em seus dedos minúsculos e o cantochão que o
incitava a dar seus primeiros passos: dandá... Dandá...
Era uma vez um homem cuja mente brilhante era demais para a cidade
litorâea em que cresceu. Como outra de suas lembranças mais recorrentes,
guardava o coro dos alunos na escola, as mãos sujas de terra, as aulas
intermináveis e repletas de conceitos que ele compreendia mal eram
enunciados.
Era uma vez um homem cujas perspectivas de um mundo novo não
combinavam com o ideal da sua cidade, tampouco do seu país. Foi por isso que,
um dia, ele se foi, todos seus pertences amontoados na maior mala da
casa, cuidando para não olhar para trás, sequer uma vez.
Era uma vez um homem que tinha uma mente e idéias tão soberbas, que
levaram-no a travar conhecimento com os mais próximos de um dos homens
mais conhecidos do seu século. Sua competência e ambissões
encontraram eco naquela nação sacudida por ventos estranhos, e ele lá
prosperou.
Do real para a fantasia, sua habilidade no xadrez transferiu-se para
os planos de conquista que engendrava, e mais que uma viória teve a nascente
no seu cérebro privilegiado.
Um dia,porém, o homem de que fala nossa história foi visitar um dos
campos nos quais suas sementes caíam há já um ano. Conduzido por outros,
sob um Sol primoroso, abeirou-se de área afastada, reservada de
inconvenientes.
- Aqui jazem mais de cinco mil! - segredou-lhe um de seus
subordinados.
De fato, sob a luz cegante, o homem contemplou os campos perfeitos
e inocentes. A terra fora remexida aqui e ali, sem, todavia, delatar o
segredo que seu seio abrigava. Entretanto, ainda assim, o homem creu ver
plantações de cadáveres que se lhe afiguravam à vista. Ali, raízes de
pernas raquíticas identificavam um velho; acolá, hastes tenras
denunciavam os membros de uma menininha; mais além uma família, logo
eram ruas inteiras, trasladadas à terra maldita, semeando de miragens
expectrais a paisagem outrora bucólica.
- São como uma plantação de mortos! - sussurrou, quase em transe.
- Ah, sem dúvida. - COncedeu seu subordinado. - Há que deitar fora as
más sementes, para que um novo mundo possa florescer.
Os cabelos louros daquela visagem feminina agitavam-se como flâmula ao vento,
parecendo a parte mais condensada da figura que timidamente erguia-se de
um rincão de terra que não trazia nada de particular em sua superfície. A
tonalidade das madeixas fê-lo recordar a figura materna, asmãos presas
às suas, entoando o cantochão da infância que outrora tantas vezes
negara. Era como se os mesmos cabelos
pudessem estar ali,nas lembranças mais recuadas; como se ela pudesse
jazer, anônima e esquecida, naquele lugar ermo.
Os compromissos mais urgentes foram anulados, graças ao prestígio
que o envolvia. O homem que era grande, apeqenou-se ao entrar na casa
deserta. A voz adulta, como que foi perdendo a firmeza, à medida que
buscava nas paredes a lembrança de alguém que deveria estar lá.
Informado por contatos em comum, soube que quem procurava
refugiara-se em outro país, desejando passar seus últimos dias em terras
que, para ele, quase não diziam nada.
O homem, entretanto, buscou-a, até descobri-la, recostada em leito
humilde, as mãos descarnadas e gélidas, o sorriso perene no rosto.
Seu diálogo foi repleto de palavras não ditas, de sentimentos sem
nome, de trocas sem quantia.
- Ajudei a semear um campo de mortos!- Disse ele, quando encontrou
voz.
O sorriso da mãe a fitá-lo era acolhedor, porém não o contradizia.
- Como eu posso viver com isso, daqui para frente? - Tornou, depois
de longo silêncio.
- Não pode. - aquiesceu ela, o tom brando e firme de outros tempos.
- Então, o que eu faço? - INterrogou.
- Não faça; refaça.
De lá saindo, voltou ao seu antigo posto, e começou a propagar aos
quatro cantos a verdade que vira. Não eram sementes de um mundo novo, mas
uma plantação de mortos. Descreveu os vultos diáfanos que brotavam do
solo,os cadáveres jazendo
sob a terra maculada, a flâmula de cabelo louro que poderia ser composta
pelos cabelos de qualquer mulher.
Enfurecidos, trancafiaram-no no barril de sementes.
Desesperado, viu-se degradado ao nível extremo,despido de seu nome,
sua personalidade e roupas. Os mais pérfidos tratamentos eram-lhe
ministrados ao som de música clássica, e viu morrer e matarem por causa
de um pedaço de pão, uma fatia de bolo, um sonho sonhado grande demais.
O bafejo da doença não o alijou de trabalhos exaustivos. No silêncio
da noite, ardia em febre,pondo-se a delirar sobre uma plantação de
mortos, os gritos ensandecidos casando-se com o canglor dos torturados
de toda sorte.
Pressionando contra seu rosto, porém, ele encontrou uma mão, dedos
finos e retorcidos, umbraço esquelético e triste. O rosto dela era pálido,
quase peroláceo,mas seu sorriso tinha a testura de sorrisos de anos de
sementes de verdade.
Contra seus lábios, água foi derramada, e gentis mãos guiaram sua
garganta para longe da cede excruciante.
O homem cujas idéias não couberam no seu país, trabalhava de dia,
morria à noite. Ainda assim, aquelas eram as horas de que ele gostava
mais. Os cuidados maternais daquela desconhecida,não só infundiam vida a
um corpo que não a comportava, como também limpava seu campo das
sementes daninhas.
Um dia, porém, para eles o tempo de espera acabou. Era tempo de
serem semeados. Ao ver-se há poucos passos da hora estrema, suas pernas
vacilaram. Os lábios murmuraram incoerentemente sobre a plantação de
mortos e certos cabelos que, àquele tempo, seguramente jaziam sob
terras longínquas, enquanto os demais, ao seu redor, nada diziam. Os passos lépidos
de outrora tornaram-se tíbios e vacilantes.
A ampará-lo, descobriu a mulher das noites de delírio. Tão lento era
seu caminhar e tão terna a mão que o socorria, que percorreu ospassos
derradeiros quase ouvindo as palavras da sua primeira lembrança: dandá....
Dandá... Dandá...
E antes do instante final, teve o primeiro pensamento realmente
lúcido em semanas: "antes ser semente que semeá-las."

Sua escolha

França. Século XIX. Todo o tempo, Paulina creu que Clara fosse sua
bem-feitora, embora houvesse uma exitação intangível nas suas
convicções.
Porém, quando o pano desceu e a verdade veio à tona, uma desconfiança virou
certeza e a certeza
virou ódio. Os insultos conhecidos não eram suficientes. Insuficientes seriam
aqueles que pudessem ser inventados. Decepção. Amargura. Revolta.
Clara foi a primeira a ser acolhida, cansada de sofrer e vagar.
Depois de algum tempo, revistos os paradigmas, percebeu todo mal que
tinha feito. Marcaram encontro com Paulina. Enfrentaram a verdade cara a
cara. Veio o entendimento. Perdoa? Perdoo. E como todo mal para
desaparecer tem que ceder lugar ao bem, marcaram novo encontro. Itália,
séculos mais tarde. Uma negociação difícil. Paulina não queria:
desconfiava. Clara garantia, afiançava, jurava de joelhos. Fazia as
promessas desfilarem em procição. Elencava boas intenções. Pedia,
implorava. Mãe e filha, um dia.
Clara voltou. Reduzida à expressão mínima, de pingo virou botão, de
botão fez-se rosa menina, florescendo pela haste umbilical. Na infância,
encontravam-se, nos momentos em que a pequena dormia. Clara e Paulina, promessas avivadas. Minha filhinha... E
chamava Paulina às bonecas que possuía.
Clara mostrou-se claramente inteligente, mesmo brilhante. Sua
capacidade floresceu junto com o corpo bem proporcionado. Esperta,
sonhos aos montes. Baús fechados e abertos deles, uma profusão.
A idéia da filhinha perdeu-se nas ambissões acadêmicas. Um
bacharelado, um mestrado, um doutorado, cursos no exterior, e então,
depois, só depois, viria a filha, se não lhe ocorresse nenhum outro
objetivo.
Mas o amor falou mais alto. Sandro primeiro foi sonho, depois foi
possibilidade; finalmente fez-se conquista, realidade palpável,
pontuando seus anelos com uma vírgula inesperada.
Ora, ele queria as mesmas coisas que ela. Também tinha uma
inteligência notável, não a jungiria a um casamento tradicional, sem
horizontes profissionais. Clara teria sua carreira, seus diplomas, seu
conhecimento encrementado exponencialmente... E teria um marido que
também olhava na mesma direção... Alguém para partilhar a garrafa de
café preto, nas noites de estudos e insônia.
Por que não? Sim. E o sim foi repetido, primeiro no jardim da casa
de Sandro, depois, no autar. Noiva linda, de branco, resplandecente.
Paulina a tudo assistiu. Chorou, encantada, fazendo os mais ternos
prognósticos. ,
As bodas enterneceram Clara. Uma família, por que não? Encontrou um
gosto para a vida doméstica que ela desconhecia. Fora das amarras
físicas, reencontrou Paulina. As promessas agora eram cataratas. Um
quarto cor-de-rosa, o escritório convertido em ninho de esperas para
depois desabrochar em tabernáculo de amor e ternos cuidados. A
princesa, a bonequinha. A equipe que acompanhara o caso desde o
princípio, exultava.
O tempo passou. O estágio era exigente, as obrigações apenas
cresciam. Sandro estudava tanto, que passava dias inteiros sem aparecer em
casa. Quando retornava, discutiam ferozmente. Não era possível que
alguém passasse uma semana apenas estudando na casa de amigos. As
discussões obrigatoriamente terminavam entre os lençóis.
Susto, surpresa, rejeição. Absolutamente, foi o que decidiram. O
casamento não vai bem; os estudos, por sua vez, não poderiam estar
melhores. Um bebê, sim, claro, teriam uma família... Se superassem a
crise, se fosse o desejo dos dois, se as carreiras de ambos oferecessem
espaço. Antes, não. Assim, sem aviso, de modo algum.
Mais uma vez, encontraram-se durante o sono. Argumentos, lembranças
das promessas empenhadas... Nada adiantou.
Enquanto isso, Paulina, reduzida à mínima expressão, sentia o
perigo, confundia-se toda, antigos receios, apagados com muito custo com
acehnos de entendimento, retornando com força total.
Quaisquer argumentos eram inferiores à vontade férrea do casal.
Arcariam com o compromisso, mas, não agora. Paulina que tentasse mais
tarde. Eles que tentassem mais tarde. Estavam na carne, deviam atender
seus imperativos. A vida não era fácil. Não se sentiam em condições.
Ganhavam bem? Ora, isso sempre pode ser relativizado. Não ainda, não
agora, sentiam muito, mas não haveria capitulação.
Noite. Para ela, a escuridão seria para sempre vermelha. Soube de
tudo antes. Quase sentiu antes que chegasse. Imaginou e plasmou o
momento
milhares de vezes, até que veio o real, e não era, de modo algum, como
supusera: era muito pior.
Depois de tudo, silêncio. Escuro, muito escuro. Em seguida, luzes
azuis e brancas. Atmosfera suave. Mãos carinhosas, uma coberta puxada
sob seu queixo.
Os olhos abertos, olhou suas mãos... Minúsculas, numa paródia do que
teriam sido... A cabeça pequenina, mas, ainda assim, desproporcional. O
tronco era o de uma mulher; as pernas e os pés, de um feto.
O grito de horror jamais saiu de sua boca. Vingança! Exigia, os
olhos fechados, a alma inteira mergulhada em um paroxismo de angústia
indizível. Deus
teria de tomar providências. Ele não deveria permitir.
O quarto dos
seus sonhos agora lhe parecia tingido de vermelho. Vermelho, vermelho,
como vermelha para ela seria a escuridão por muito e muito tempo.
Meses se passaram. Não sabia bem quando era noite ou dia. As horas
se derramavam embebidas numa infusão de ódio atordoante. Matá-la. Arrastá-la pelos
cabelos com força, com tanta força, que haveria de separar-lhe a cabeça
do corpo no processo. Depois, ah, sim, sem dúvida, arrastar essa cabeça
até a ignomínia completa, os abismos tortuosos, as palavras que
ensandeciam, o caos absoluto. Gritos, vozes, apodos aviltantes,
chafurdando na lama da raiva sem freio nem medida nem direção. Não
haveria mais carreira brilhante alguma. Uma vida de tormentos,
frustrações e culpas. Ela sabia aonde seu quase pai estudava, nos
últimos tempos. Far-lhe-ia saber da pior forma possível.
Superpotencializaria a informação até o infinito. Derramaria a miséria
na sua vida como vidro moído mergulhado em ácido com alto poder de
corrosão. Oh, sim... Uma eternidade inteira para planejar e executar,
torturar e aviltar... E o quarto cor-de-rosa tingido de vermelho.
- Paulina, Paulina, por favor...
A princípio, a voz era suave e branda; depois, fez-se exigente,
imperiosa, ainda que não subisse o tom.
Os olhos se lhe abriram. A agonia elevada à potência limite, contemplou o lugar em
que estava. Por um breve instante, pensou que se descobriria no mundo
quente e morno do qual fora outrora senhora, e que tudo aquilo foram
temores infundados da sua alma ainda incerta sobre as blandícies do
amor. Mas estava lá. O ambiente ascético, a mulher de túnica alvíssima
segurando sua mão com a delicadeza de um anjo e a determinação de um
titã.
- Paulina... - Sussurrou a outra, na penumbra. - Por favor, não
faça mais isso.
Buscou em si ódio suficiente para a atordoar no próprio instante que
a mirasse, mas a ternura infundida pelo toque dela não o permitiu. Os
olhos de ambas se encontraram. Em um átimo, a outra esquadrinhou a
mente da enferma. No silêncio, ela percebia o que estava acontecendo,
mas sentia que tudo era feito com tanto amor, que não poderia
rechassar, mesmo que quisesse. Só naquele momento, percebeu quanto
precisava de afeto, embora julgasse que apenas necessitava manter o ódio que a
unia àquela que comprometera-se em recebê-la. Mas a compreensão da
outra banhou suas fibras ressequidas
pelos sentimentos em desalinho qual néctar de propriedades curativas.
Em uma miríade de impressões suaves, passadas de uma mente para a
outra, a enfermeira deu-lhe seu nome, como quem oferta uma recordação
de uma noite sagrada, etérea e remota: Larizza. idéias fluíram
entre ambas,
sem que precisassem falar. Da raiva instintiva, Paulina passou a um
respeito legítimo.
Ainda assim, não pôde soptar a pergunta que lhe veio à mente.
- Onde está Clara? - Perguntou, estranhando o som da própria voz.
- Clara? - Indagou, como quem estivesse provisoriamente incerta
sobre o rumo que a conversa estava tomando - está bem, acho.
- Bem? Ela está bem? - Estivera suspensa em uma outra realidade,
pensou. Entretanto, a idéia de que a outra estivesse simplesmente "bem",
fê-la voltar à postura anterior. - VocÊ tem idéia do que está me dizendo? Depois
de tudo o que fez, ela está bem? Tem
idéia da ignomínia que ela me fez? Clara prometeu! E não foi a primeira
vez que falhou.
- Sim, eu sei.
- Sabe? De verdade? E então, o que me diz disso?
- Paulina, por favor, descance. Agora não é o momento de conversar
sobre isso.
- Ah, não? Não é o momento? E quando será o momento? Quando ela
fizer com outra pessoa, e outra, e outra e mais outra? - Perguntou,
tentando soerguer o corpo do leito, sem obter sucesso.
Olhando-se, percebeu que todo o seu corpo, agora, parecia ao de um
bebê.
- Paulina... Escute, tudo ainda pode ser refeito. Foi terrível, é
verdade, todos nós reconhecemos, mas eles ainda são jovens, podem
amadurecer e, depois, se você quiser, poderá voltar outra vez.
- Voltar? - Inquiriu, o rostinho miúdo voltado na direção da
interlocutora, banhado por expressão atormentadíssima. - Você supõe que
eu deseje voltar?
- Escute, Paulina, nada está decidido, não precisamos pensar nisso
agora. Temos um longo caminho, até sua recuperação completa.
- E enquanto eu estou aqui, ela está aonde? Ela está aonde?
Em silêncio, a enfermeira estendeu-lhe as mãos, de onde emanaram uma
luminescência azul e suavíssima. Dentro de poucos instantes, Paulina
adormecia, o corpinho serenado, acomodado no lençól alvo.
Seu sono foi agitado; os sonhos, entremeados de vingança. O ódio
que sentia adquiria proporções destrutivas. E o quarto rosa tornando-se
escarlate.
Mais uma vez acordou e olhou para baixo. Graças ao trabalho dos
médicos, sua aparência voltava a ser como antes, os olhos
percucientes e claros, os cabelos finos, loiros e ralos, a boca que podia ser,
dependendo das circunstâncias, mesquinha ou afetuosa.
Daquela vez, também ela estava lá, sentada, uma presença serena e
firme, contra a tarde calma que se escoava lá fora.
- Onde ela está? - Perguntou, uma vez mais, com a certeza de que a
outra sabia muito bem a quem se referia.
- Eu não sei, Paulina.
- Sua notícia mais recente? - Inquiriu, agora sem desejar
destroçá-la com a simples fúria dos seus olhos. Entretanto, de algum
modo, a fúria recolhida pesava mais que a explosão da
entrevista anterior.
- Não sei exatamente. Acho que estava recolhendo material em Paris.
- Paris? Irônico. Por que ela não aproveitou e não fez uma pesquisa
breve sobre sua última vivência, em Paris? Talvez isso lhe pudesse ter
ensinado alguma coisa sobre promessas.
Um suspiro quase imperceptível, os olhos nos dela.
- Paulina, faz já dois anos. Você não poderia...
- Não. Não faz dois anos, faz dois minutos! Eu sei que sabe, melhor
que eu, que o tempo é relativo. Faz dois minutos, dois segundos, sem
dúvida, menos de dois dias, e ainda tem coragem de defendê-la?
- Então não percebeu ainda que eu estou defendendo você? - Indagou.
Seu tom era firme, porém brando, as mãos fechadas sobre o pulso da enferma
com urgência e doçura.
Uma vaga de confusão atravessou os olhos de Paulina, e a outra
tratou de esclarecer:
- Você está se aprisionando a isso. Está permitindo que isso te faça
ainda mais mal. Está retardando seu próprio restabelecimento, perdendo
tempo valioso.
- Eu não me importo. - Proferiu, a voz um pouco acima que o
recomendável.
- Não? Com o que você se importa?
Paulina permitiu que as emoções viessem à tona. Tocou-as brevemente
com os dedos, antes de deixá-las vir à luz. E, embora as palavras
seguintes parecessem pedras atiradas ao rosto da outra, ambas sabiam que
eram à ausente que elas se destinavam.
- Com ela. Quero que ela viva todo o horror que me fez viver. Quero
que ela sofra, que blasfeme, que se afunde na própria miséria! Que
perceba o que realmente existe, por trás daquela maldita máscara de
civilidade. Quero que ela se odeie. Que morra de vergonha de mim. Quero
vê-la patinar nas próprias imundícies e, talvez ali, rogar-me
misericórdia, para que eu feche em seu rosto a mesma porta que ela me
fechou.
- Ah... É isso que você quer? - Perquiriu Larizza, os olhos
cintilando com uma luz nova, a expressão determinada, as mãos
desprendendo-se do pulso da outra, os cabelos agitando-se levemente, com
a sua alteração.
Paulina registrou tudo isso e olhou-a, um tanto confusa.
- Apenas responda-me se é isso que você quer.
Agora, ela hesitou, começando a perceber que o diálogo que
travavam passara a ser bem
mais que retórica.
Diante da surpresa crescente da enferma, Larizza ergueu-se da
posição em que estava. Com movimentos experientes, retirou todas as
mantas que aconchegavam o corpo quase refeito de sua protegida.Puxando-a
por uma das mãos, fê-la levantar-se, sentar-se no leito, convidando-a a
descer dele, e se houve gentileza enquanto ajeitava-lhe a escada sob os
pés, havia um ar implacável quando, sem dizer palavra, não lhe dava
tempo de pensar no que estava acontecendo.

Paulina sentiu a frialdade do chão. Saiu da sala aconchegada, e
recebeu, no rosto, a luminosidade do Sol poente. A enfermeira segurava-a
pela mão, decidida e enérgica, puxando-a, sem agressividade, mas de forma
irresistível para fora, sempre para fora.
Então os seus pés sentiram a terra macia dos jardins, o nariz
registrando a suavidade das flores, os olhos deliciados com a festa
das cores e das aves voejando no firmamento. Os cabelos finíssimos e
ralos moviam-se com o balanço da brisa morna, ao mesmo tempo em que
continuava a andar. Viu grupos de pessoas atarefadas que passeavam-se
nas mais diferentes direções, um ou outro monumento ornamentando uma das
muitas praças por onde passavam. Nos edifícios oficiais, a bandeira
tremulava gentilmente, ao mesmo tempo em que música indizível
sobrepairava na atmosfera, emprestando a tudo um ar em que sentido de
responsabilidade e prazer mesclavam-se, mais que o que se imaginaria.
Costurando pelas ruas pavimentadas, pelas praças e pelas fontes de
água puríssima, sua guia continuava a incitá-la a andar, puxando-lhe
pela mão, sem qualquer trégua, sem dizer-lhe palavra, quase sem olhar
para ela, enquanto a fazia passar das ruas residenciais para os campos,
dos campos para os bosques entremeados de nascentes encantadoras, das
nascentes para um descampado inesperado, do descampado para um declive
que ia descendo, descendo. Com ela desceu por mais de dez minutos, o som
da música dulcificante deixado para trás, a visão do Sol poente
substituída pela escuridão quase imperscrutável de um céu sem estrelas e
que ostentava uma Lua preguiçosa e carcomida.
De súbito, poucos passos a frente de seus pés, o declive
transformava-se em uma escada. Os degraus mal ajambrados continuavam a
conduzir para baixo, sempre para baixo. Ali, de pé, Paulina teve
permissão de parar. Sentia os pés doridos pelos diferentes tipos de solo
a que estiveram expostos. Os olhos, com alguma dificuldade, buscavam
hadaptar-se à pouca luz, mesmo que não houvesse muito mais além de
trevas para ser visto. Os cabelos tremeluziam ao influxo de um vento
gélido, enquanto suas narinas incomodavam-se com um cheiro pesado, metálico e
indefinível.
- Você sabe que lugar é esse? - Quis saber a enfermeira, sem
soltar-lhe a mão.
Pauina não podia evitar tremer de frio, embora preferisse não fazê-lo, como se isso
denunciasse uma espécie de fraqueza, diante da outra.
- Estamos na divisa, o mais próximo possível da divisa. Para trás,
temos os aglomerados de colônias.
Você sabia de tudo isso, anos atrás, antes de
ingressar na matéria, mas pode ter esquecido.
Silêncio. O vento assoviava de forma incômoda, enquanto, mais abaixo,
pontinhos de luz, parecidos com vaga-lumes àquela distância, faziam-se
ver esporadicamente.
- Nós temos o mais próximo do céu que muitos esperam na carne.
Gozamos, sem dúvida, do melhor que se poderia esperar, de acordo com
nosso merecimento. Temos estímulos, oportunidades, amor e compreensão,
uma combinação perfeita para que possamos evoluir, ampliar nosso máximo.
Se nos dedicarmos, poderemos ter acesso a conhecimentos inimagináveis,
alegrias sutilíssimas, afetos imperecíveis e, claro, às melhores
possibilidades de crescimento na carne.
"Com o tempo, aprendemos a atravessar as imensidades com a simples
força do pensamento e, então, sentimos pelos nossos antigos algozes uma
legítima piedade, porquanto os compreendamos, efetivamente. Por trás de
todo mal feito existe uma grande dor, Paulina, e isso, em lugar de
justificar-lhes os atos, tornam-nos ainda mais tristes, posto que, para
além do mal que inflingem aos outros, recrudesce o mal que fizeram a si
mesmos.
"VocÊ está livre, Paulina, livre para fazer o que quiser, talvez,
mais livre que o que jamais possa ser, imersa na carne. Pode descer
essas escadas e inscrever-se na Sociedade dos Vingadores, e ter uma
organização com poderes insuspeitos a sua disposição, mas também pode
deixar sua humilhação para trás, despojar-se do seu ódio, ou, ao menos,
do desejo de vingança, e continuar conosco, galgando, assim, patamares
de crescimento nos mais diversos graus, disponíveis na medida do seu
esforço e espírito de sacrifício.
- Você está me pressionando? - Quis saber Paulina, agora tremendo
visivelmente, enquanto sua interlocutora a enlaçava, em um gesto tão
afetuoso, quanto suave.
- Não. - E, apesar da delicadeza, foi inflexível a voz que a
respondeu. - Estou lhe mostrando as dimensões corretas da sua escolha.
Se você quer se vingar, não ficará conosco. Descerá essas escadas, por
conta própria, e ficará aí. Fará o que te parecer justo e,
eventualmente, conseguirá alguma vantagem aparente sobre sua atual
algoz, tomando-lhe o lugar de verdulgo, concedendo-lhe o seu, de aparente
vítima.
- Excelente.
- Excelente? Ah, sim, devo ser honesta e dizer que você tem boas
chances de arrastá-la pelos cabelos, até que sua cabeça se desprenda do
resto do corpo, mas devo recordá-la de que o sangue que respingará,
também enodoará suas mãos e suas vestes. Devo acinalar que, ao fazer-lhe
tudo isso, você estará em posição de receber dela uma vingança
igualmente sangrenta, igualmente aviltante, e igualmente memorável e,
após isso, é bem provável que deseje inflingir-lhe nova série de
infortúnios. E você sabe quanto tempo isso pode durar? Dez anos? Cem?
Sei de casos que duraram milênios! E tudo porquê? Porque você acha que
é bastante inteligente e sensata em abrir mão de todas as necessidades
da sua alma, para ir à desforra, como se isso pudesse apagar o
passado, como se isso pudesse fazê-la mais feliz, como se isso pudesse
fazer com que o quarto que sonhou fosse rosa, deixe de te aparecer
totalmente vermelho de sangue, nos seus sonhos.
- Ah, você viu isso? - Quis saber Paulina, entre surpresa e
aviltada.
- Era minha função ver. Mas, por favor, não pense que estou dizendo
isso para constrangê-la. Eu só estou tentando dizer que não é assim que
você vai concertar o que quebrou, não é assim que você vai encontrar a
felicidade, não é assim que tudo isso vai terminar bem.
- E se eu descer essa escada, não poderei voltar? Você me negariam a
assistência justa?
- Ah, não... Nunca. - E, agora, ela atraía Paulina com mais
intensidade, face fria encontrando face fria, os olhos fundidos em um
só, uma vaga de impressões díspares chocando-se nas retinas, suas
palavras adquirindo a contundência de um juramento. - Nossas portas
jamais estão fechadas a qualquer um que deseje ser feliz deveras, você
sabe. O problema é que, caso opte por isso - E abrangeu com o olhar e um
gesto de mão toda a imensidade escura logo abaixo delas - ao retornar
para nós, estará ainda mais alquebrada, mais triste, mais desiludida,
mais marcada... E terá perdido ainda mais tempo. Será mais difícil, mais
doloroso o caminho de volta, e você não precisa passar por isso,
Paulina, não precisa! Sua alma está pronta para anseios mais delicados,
sua mente, no ponto de absorver conhecimentos mais profundos. Só
precisa...
- Esquecer de tudo que ela me fez?
Ao som dessas palavras, a expressão da outra cintilou por ium
instante, com uma energia ampla e desconhecida. Os braços que a
protegiam do frio ficaram tensos por um segundo. Seus olhos pareciam
capazes de incendiar gravetos com a mera intensidade das suas pupilas.
'Mas, assim como veio, passou. O intenso e firme agora soava desolado e
lasso; a veemência deu lugar a uma delicadeza moribunda, ao tempo em que
o vento as assoitava ainda com mais determinação.
- Paulina, ouve, e será a última coisa que vou dizer sobre tudo
isso: ao trancar-se naquele banheiro sombrio com os apetrechos que
julgava redentores, Clara fez sua escolha. Agora, é o momento da sua.
Essa é a sua escolha, seu momento, sua decisão. São instantes separados,
ainda que interpenetrando-se. Mas a escolha dela só vai influenciar a
sua se você quiser. Ao fazer o que fez, Clara conseguiu muito mais que
te decepcionar.
- É. Se eu descer essa escada, a culpa será dela. Transformou uma
filha que seria maleável e dedicada, em algoz pertinaz.
- Não. - E, agora, decididamente, havia mais intensidade nas suas
palavras. Um ar intistindo de autoridade e força emanava dela, e havia
um tal calor, que quase poderia aquecer o ambiente hostil em que
estavam. - Até onde eu sei, quando Clara fez aquele aborto, não te
retirou a capacidade de pensar por si mesma.
O Silêncio deslizou de uma para outra, como se fosse uma entidade
corpórea. Passou pelas duas, sentando-se nos ombros de Paulina.
- Vamos voltar? - Sugeriu Larizza, tocando-lhe no braço.
A outra não se mexeu.
- Paulina? - Chamou, e seu nome era uma pergunta e um sorriso soltos
no ar e esfarelando-se contra as pedras lá embaixo.
Lentamente, a interpelada voltou-se para a direção de onde vieram.
Juntas, começaram a galgar o declive. Uma pausa. Imobilizada sem
prenúncio, as duas contemplam-se novamente. Uma compreensão instantânea
esgueira-se de uma para outra. Silêncio. A única imagem não-verbal que a
outra registra, é um quarto cor-de-rosa fazendo-se vermelho. Primeiro,
as paredes; depois, o dedo; estranhamente, só nesse momento entram as
janelas. O piso. Vermelho sangue, vivo, intenso.
O instante multiplicou-se até o infinito. Olhos nos olhos, o único
contato físico sendo o das mãos entrelaçadas no escuro e no silêncio.
Cheiro metálico. Vento intenso, fustigando.
- É Isso realmente o que você quer? - Perguntou, e, como sempre,
aquela forma de falar como se estivessem apenas continuando uma
conversa, não soava anacrônica.
- É a minha escolha. - Confirmou a outra, não sem dor.
Lentamente, a mão livre da outra afagou-he os cabelos, poucos e
finos, macios ao toque, soando, concomitantemente, frágeis e impossíveis.
- Por que fazer o caminho mais longo, meu bem? - Quis saber, a
delicadeza fazendo anéis em torno de ambas, uma lágrima nascendo na
mente, sem, contudo, ainda atingir os olhos.
- Eu preciso. Entendo o que você falou, mas eu preciso.
Agora os segundos eram como borboletas velozes e imprevisíveis.
Todas as palavras eram supérfluas. Um instante, um abraço, o contato
visual servindo de ponte para o contato entre almas. Um último afago,
uma última frase morrendo antes de nascer. Percepções, as mentes
dialogando em uma compreensão recíproca.
- Você sabe que talvez um dia ainda possa ter aquele quarto
cor-de-rosa. Podemos trabalhar com ela, mas em frente distinta.
Prepará-la para recebê-la, para repor o que...
- Eu não quero. - E todo seu corpo ecoava a mesma opinião.
- Sabe que, ainda aí, haveria outras alternativas...
- Eu sei. É a minha escolha. Eu estou presa a isso. Eu quero
continuar presa a isso. Eu preciso continuar presa a isso. Ela tem
que
pagar, e eu quero cobrar.
Após alguns momentos, Larizza deu-lhe as costas e recomeçou a
subida. De quando em quando, olhava para trás. Ao aproximar-se do
descampado, percebeu que, lentamente, atrás de si, Paulina seguia.

O pior da manhã

Chamava-se Marina, mas era quase como se não tivesse nome.
Passava sem ser vista por aquelas ruas largas, semeadas de carros e
indiferença{,} e ignota pelas avenidas duplas e seus semáforos
intimidantes. Era só uma menina. Pés descalços, olhos arregalados,
como em constante expectativa.
Morava com a tia e mais cinco irmãos. O pai estava preso; a mãe{sem
vírgula}
sumira{sem o "se"} em um carnaval, fazia já quatro anos.
Parou. Estava cansada. Era exaustivo andar tanto. Encostou-se {a} um
muro e ficou olhando os carros que passavam velozes. Já eram seis
horas da manhã. Ainda tinha de andar tanto!
A barriga deu sinal. Estava com fome. Desde às três da tarde{sem
vírgula} do dia
anterior, não comia. Olhou as casas, imponentes e aristocratas, faiscando
no esplendor do Morumbi. Devia arriscar?
Na mente, ainda reboava a recomendação{qual?} gritada pelo interfone, no
dia anterior. Hesitou. Voltou a caminhar.
Era provável que{,} se estivesse calçada, bem vestida e penteada, as
pessoas {a} parassem e perguntassem onde estava sua mãe; entretanto, como
estivesse vestida daquela forma, era tácito que ela não tinha mãe. Pelo
menos, não o tipo de mãe com que os bons samaritanos de ocasião
desejassem perder seu tempo.
Uns quinze minutos mais tarde, a fome foi maior que o orgulho e o
medo. Parou. Ficou na ponta dos pés. Apertou o interfone. Um toque só,
para não irritar. Uma menina atendeu. Parecia ser da idade dela.
- Alô... - Disse a vozinha infantil. - QUer falar com quem?
Marina hesitou. Não, ela não queria falar com ninguém.
- Não.
A voz do outro lado também silenciou, provavelmente{sem vírgula} tentando
entender. Depois, perguntou:
- O que você quer, então?
Aquilo era fácil. Ela respondeu:
- Comida. Eu estou com fome.
A interlocutora improvisada{por que improvisada?} hesitou novamente.
Depois{sem vírgula} perguntou:
- Serve pão?
Marina abriu um sorriso:
- Sim! - Respondeu a menina, sem disfarçar a alegria.
- Eu vou levar pra você.
O interfone silenciou. Marina sentou-se na calçada, cutucando uma
ferida no pé esquerdo. OUviu-se um clique. O portão {se} abriu. Ela
levantou-se, limpando as mãos na calça.
- Oi... - DIsse a recém-chegada.
Trazia vestido um uniforme escolar e duas transinhas no cabelo
brilhante e negro. Cheirava a colônia infantil. Era gorducha, de
bochechas rosadas. Trazia{palavra repetida} nas costas uma mochila e{,} na mão, uma bandeja.
Em cima da bandeja{,} havia um pão e um copo de leite.
- Mamãe disse para você beber o leite e me devolver o copo, mas que
o pão você pode comer depois.
Em silêncio, a menina tomou o copo e bebeu. Era leite quente, com
açúcar e café. Estava gostoso. Muito gostoso.
- Qual o seu nome? - Perguntou a garota da bandeja, curiosa.
- Marina Ferreira Silva. E o seu?
- Milena Novaes Nass.
Marina estendeu o copo. Milena pegou.
- Agora eu tenho que ir para a escola. - Disse ela, entrando em
casa.
- Tá. Obrigada.
- De nada.
O portão imenso fechou-se. Marina afastou-se, feliz, acariciando o
pão fresquinho e ainda quente, adivinhando o gosto da manteiga.
E então, depois de caminhar um pouco, sentou-se em uma {amurada} para
comer. Era melhor que {previra}! Estava realmente delicioso! Tão
delicioso! Mordeu uma, duas, três vezes. O estômago agradecia. A
boca{sem vírgula}
sentia e saboreava. Comia devagar, remexendo cada bolo alimentar com
vontade.{sem reticências}
Foi então que ela {o} viu. Era alto e também tinha uma mochila nas
costas. Andava apressado. Olhou para ela e sorriu. Ela sorriu de volta,
sem jeito. Parecia ter uns quinze anos. Então ele passou por ela e, sem
acalmar o passo, retirou-lhe o pão da mão e atirou-o para o meio da rua.
Marina olhou-o, chocada. Ele riu, divertido, enquanto um carro,
indiferente, passava por cima dos restos daquele alimento.
marina quis gritar, mas ele já ia longe, fones enfiados nos ouvidos
e o passo lépido e indiferente de quem estava totalmente de bem com a
vida.

E se, outra vez...

E se, outra vez...



De joelhos no chão, o corpo derreado na direção da bacia sanitária,

Gabriela vomitava. O cabelo, de uma beleza virginal, revoluteava com

seus movimentos quase convulsos. Barulho de maçaneta, porta logo aberta.

- O que é isso, Gabriela? - mulher com o jornal na mão aproximou-se.

Ajudou-a a erguer-se com cuidados maternais.

- Mamãe - ela murmurou - É já a terceira vez.

Uma consulta médica foi marcada. Gabriela compareceu. Exames não

encontraram nada. Seu namorado de há três meses começou a preocupar-se.

Na terceira consulta, o facultativo aventou exame de gravidez. A mãe

protestou: a menina era virgem. O médico, no entanto, deu-lhe um sorriso

onde incredulidade e piedade se misturavam.

Deixaram o consultório com o pedido e as lágrimas de Gabriela.

Absurdo! Um insulto! Isso era porque eram do morro! Deveriam processá-lo.

Então fizeram, mais para ter bases para um processo. O resultado foi

inacreditável. Surpresa e tristeza em uma só medida. Gabriela protestava

sua virgindade, enquanto o namorado, agora ex, brindava-a com apodos

deselegantes. O pai não lhe dirigia a palavra; a mãe queria morrer. Além

da gravidez, havia a mentira. Meu Deus, quanta hipocrisia!

Gabriela parecia ser moça quieta, tímida e centrada. Era bonita,

mas não tanto, era inteligente, mas nem tanto assim. Beleza tinha, e não

de se jogar fora, mas havia nela um certo ar corriqueiro, uma certa

expressão que parecia dizer que ela, afinal, não era lá ninguém muito

especial. Mas tinha bom sentido de humor e longas pernas. Ia de casa

para a escola e da escola para casa. Eventualmente à missa e em visitas

à casa da avó. Todo o mundo a respeitava, ao menos, até saber da gravidez. Então começou a ser

considerada sonsa e dissimulada.

Os pais mandaram-na encontrar emprego. Ela deixou a escola e começou

a trabalhar de doméstica. Diariamente, subia e descia o morro,

enquanto a barriga crescia. Os meses passavam, como que

corressem do calendário.

Uma bela noite, era Carnaval. Toda a cidade estava animada. Turistas

vieram de todos os pontos cardeais... Pelo menos, de todos os

municípios limítrofes do lugar.

Gabriela terminara o expediente. Barriga grande, fome ainda maior. A

cidade atulhada de gente. Sentia-se mal. Os trios elétricos deixavam-na ainda mais

zonza. Um e outro atiravam-lhe olhares e palavras indelicados à sua

passagem. As lágrimas rolaram-lhe, mais uma vez. Barulho,

empurra empurra. Uma vida e meia para chegar até o morro.

Lá chegando, não podia subir. A polícia estava lá. Não era seguro

voltar para casa. Olha para um lado, olha para o outro. Pensa no que

fazer, não faz nada. A roupa molhada

denunciava seu estado. E, enquanto a água pingava, alguém se destacou da

multidão.

- Gabriela, o que você está fazendo aqui? Sai daí!

Era o namorado. Briga e mágoa esquecidas, ultrapassou a pequena

muralha humana para chegar até ela.

- Bem, vamos sair daqui! Já tem dois presuntos lá em cima.

Puxou-a pela mão. Ainda descia-lhe água. Todos os olhavam, mas,

estranhamente, pareciam invisíveis, pois ninguém lhes oferecia auxílio.

Aquele taxista fingiu não lhes ver o gesto esperançoso, à percepção de

turista evidentemente endinheirado; o ônibus negou-se a parar longe do

ponto e no lugar certo, também.

Tinham que achar um hospital. Pega um atalho, para chegar mais de

pressa. Pouco a pouco, pouco a pouco, tudo ia ficando para trás. A dor

aumentava e as forças diminuíam. Cansada, deixou-se estender no chão

de pedra.

A noite caíra, por completo. As estrelas pareciam mais

brilhantes que nunca.

Apavorado, ele colocou-a nos braços e começou a caminhar com ela,

para o hospital cuja localização perdera de todo. Nem soube

porquê, depois, seus passos o guiaram para a areia da praia. Deitou-a,

suavemente. Observou-lhe o rosto delicado e quase infantil, banhado

por aquele céu de maravilha. Toda ela era pequena, redonda, frágil,

exalando doçura e urgência. Deus, como a amava! Por que deixara ela que outro chegasse primeiro, quando

tinha, a esperá-la, o maior amor do mundo?

Os lábios entreabertos, o belo corpo contorcido na tentativa de

conter a dor. De repente, de lugar nenhum, vieram três mulheres. A aparência

não deixava dúvidas sobre sua origem. Uma delas adiantou-se, sem dizer

palavra, e, com uma rapidez espantosa, fez dos presentes uma equipe de

trabalho eficaz.

Os quatro despiram-na. E, de repente, sem aviso, uma forte luz

inundou-os. Brilhou, intensa, soberana, cegando a todos por um segundo.

E, quando cessou, já eram seis os que ali estavam. Gabriela segurava

nos braços seu bebê encantado. Seus vagidos enchiam a noite de doces

promessas. Do céu, música angélica parecia derramar-se do infinito. Os

anjos conseguiram, afinal... Ele voltara.

Descoberta

Descoberta



Rodavam fazia alguns minutos, quando ela disse, naquele tom que

pretendia fosse casual, mas que ele sabia ter sido estudado por minutos,

senão horas a fio:

- Eu tenho a impressão de ter visto essa menina.

Ele pareceu não ter ouvido por um instante, enquanto preparava-se

intimamente para o que estava por vir.

- Menina? Que menina? - seguiu a direção do dedo da esposa, que

apontava abertamente para um vulto montado em uma bicicleta, quase

indistinto , no caos do trânsito. - Ah... Essa...

- É sua amante, Márcio?

Era ali que ela quisera chegar, desde o princípio. Percebeu com um

misto de tédio e resignação. Molhou os lábios com a língua, antes de

responder.

- Amante? Por favor, Maria Cecília!

Ao som das palavras do outro, ela empertigou-se. O Sol que se punha,

refletiu nas unhas vermelhas, imaculadas. Seus olhos, agora alertas,

mostravam que ela estava mais que pronta para a batalha verbal.

- Vai dizer que não reparou na menina? Ela estava na porta do seu

trabalho, quando eu fui te pegar, e não é a primeira vez.

- Do meu trabalho?

- VocÊ tem que parecer um idiota?

- Você tem que ser agressiva?

- VocÊ não reparou na menina. - e agora soava irônica; Para ele,

incompreensivelmente ofendida.

- Não. Óbvio que não. Você tem idéia de quantas meninas estão na

porta do meu trabalho, Maria Cecília? Pelo amor de Deus, eu sou

professor. E, depois, faz idéia de quantas dessas meninas

podem ter a rota coincidente com a nossa?

- Não acredito.

- Bem, não é meu o problema. Pensei que o seu problema fosse eu ter

reparado na menina. Reparado até demais. Então eu lhe digo que não

reparei na menina e você continua tendo um problema.

Ela sentiu-se aviltada. Detestava a forma como ele reduzia tudo a um

denominador razoável, no qual ela e suas percepções sempre acabavam

ridicularizadas; odiava aquele tom calmo, inalterável, e mesmo a

irritação do outro lhe parecia um indisfarçável ar de superioridade.

- VocÊ é ridículo...

Márcio olhou para o tráfego, um instante. Dobrou uma esquina,

deixando para trás o seu posto de gasolina favorito. Pensara em

abastecer antes de chegar à casa, mas, como sempre, Maria Cecília

continuaria aquela briga absurda na frente de qualquer um. Ele detestava

briga. Especialmente, brigas surgidas do nada. Elas o exauriam,

provocavam-lhe dores de cabeça. Ela sempre queria conduzir tudo para um

patamar emocional, no qual só suas emoções e impressões tiradas do nada

tinham alguma valia. Concretamente, só havia um aspecto da sua vida em

comum que não conduzia à discussões tão inúteis quanto desgastantes, e

foi nele que ele se viu buscando refúgio, mais uma vez.

- E você é deliciosa. - Viu-se dizer, forçando um tom tépido e

urgente que não era sentido, de modo algum. Não importava. O desejo

tornar-se-ia legítimo, assim que a tivesse a poucos passos de trajar

nenhuma, nenhuma roupa. Sentia-se totalmente ridículo, nesses momentos,

mas isso não significava nada, se, em troca, desfrutasse um pouco de

paz.

- Eu sabia que ia terminar assim.

- Você faz de propósito, não é...? - Perguntou, esperando que seus

olhos agora tivessem um brilho de desejo incontido.

- Seu bobo! - Ela disse, rindo, tocando-lhe o ombro, a conhecida

chama, indiscutivelmente, animando-lhe os olhos castanhos.

- Faz, eu sei que faz. - Disse ele, passando pela casa sem parar.

- Espera, o que você pensa que está fazendo?

- Andando de carro, é óbvio.

- Pensei que chegáramos em casa...

Ele obrigou-se a sorrir, projetando imagens de colegiais na mente,

na tentativa de que seu entusiasmo soasse mais convincente.

- E chegamos... Mas já estamos saindo...

- Para onde? - Perguntou ela, o rosto totalmente voltado na direção

dele, a expressão agora alegre, relaxada. Uma réstia de Sol alojou-se por

um segundo no seu dedo mínimo, no momento em que ela erguia a mão

para empurrar uma mecha do cabelo castanho para trás da orelha.

- De verdade, você não é capaz de adivinhar sozinha?



...



A expressão dela estava satisfeita, apesar de cansada. Sentada na

cadeira, parecia feliz e realizada. Ao seu lado, Márcio fingia dormir.

Sentia-se aviltado por si mesmo, violado por ter de fingir uma paixão

que não existia há tempos, simplesmente para ter paz. Será que aquela

briga inútil fora, de fato, no afã de conduzir àquilo? Será que ela

julgava, realmente, aquele preâmbulo doentio parte do que considerava

uma "sedução elaborada"?,

Prendeu a respiração. Sentiu-se humilhado por ter de comprar

estabilidade com sexo. Soltou a respiração, observando o respeito por si

mesmo deixá-lo, junto com o ar que retivera. Abriu os olhos devagar e

fitou a mulher que o olhava. Reprimiu uma expressão de desagrado.



***



Foi na saída da escola. Fazia dias que eu ia correndo para o

prédio do cursinho. Vou lá desde que descobri onde fica. A mulher

dele chegou. Pelo menos penso que seja sua mulher. Ele desceu e entrou

no carro. O carro saiu descendo a rua. Então eu pensei na minha

bicicleta. Pensei e já estava indo atrás. Tinha que ver aonde

morava. Mas para quê?

Engraçado que tudo eu faço primeiro para pensar depois. Foi assim

quando liguei pra casa dele. Ligava e desligava e ele nunca atendia. Mas um

dia ele atendeu. Fiquei ouvindo aquela voz e imaginando-a me dizer

coisas bem diferentes de "alô". Pouco a pouco, aprendi seus horários.

Aprendi a que horas era mais fácil de ele atender. Também aprendi que

tinha outra menina lá que parecia ter a minha idade. Aprendi também que

tinha uma mulher.

Mas hoje eu segui. Foi difícil, porque o trânsito estava no horário

mais concorrido. Cheguei aonde ele morava. Pensei que

ia descer com a mulher. Nem desceu o vidro. Mas então eu voltei para

casa. Já estava tarde demais para mim.





***



- Olha aí ela outra vez.

Ele mal e mal reprimiu o asco. Outra vez? Olhou pela janela e

avistou a garota, de fato, em uma bicicleta. Contudo, jamais

demonstraria que já a localizara. Deus sabe que inferências ela poderia

fazer, à partir daquele fato.

- Ela quem?

- A menina te seguindo.

- Que menina? - Voltou a olhar na direção da garota. Seus olhos

encontraram-se com os da esposa. Ele suspirou, resignado.

- Confessa, vai, ela é sua amante... - Insinuou, a voz aguda

ecoando no espaço exíguo.

- Como se sobrasse tempo para uma... - Atalhou, entre cansado e

enojado. Teria de fingir outra vez? Imediatamente, sentiu-se

desprezível, enquanto a mão livre investigava, roçando com casualidade

estudada pelas coxas da esposa.

Como se fosse programada para isso, a expressão relaxou-se, com um

sorriso escorregando dos lábios para a tarde que se despedia.

- Ora, por favor... Márcio, estamos no trânsito!

- Eu precisaria de uma amante, podendo fazer essas coisas com você?

- Perguntou, colocando na mente imagens de sua única amante, em todos

aqueles anos de casamento.

- Isto não está certo... - Replicou a esposa, com um ar de estudada

timidez.

Por algum motivo, aquilo foi demais. Sentiu que não sobraria sequer

o autorrespeito indispensável para continuar com uma vida saldável, se

fizesse aquilo novamente. Afastou a mão, em um átimo. Os olhos,

melífluos a custa de evocações mentais, agora fizeram-se desafiadores e

intensos. As mãos crisparam-se sobre o volante. A testa franzida,

a cabeça levantada, olhando a mulher de cima para baixo,

detestando-a no preciso momento em que alisava o cabelo escovado, as

unhas reluzentes captando a luz, por um segundo.

- Não, não está. Não está certo eu precisar te seduzir o tempo todo,

para ter a esperança de uma noite a salvo do inferno emocional em que

você insiste que vivamos. Você decidiu que eu tenho uma amante, e, mesmo

sem a menor prova atestando o fato, acha lícito me infernizar sempre que

pode. Pelo amor de Deus, não tem menina nenhuma!

- Ah, não? Ela anda te seguindo! - Respondeu ela, o tom de voz bem

mais alto que antes, agudo, ferindo-lhe os ouvidos, penetrando-lhe no

cérebro.

- Você está louca! Só vocÊ vê essa menina!

- Não estou louca; só não sou uma idiota! Tem todos os sinais! -

Agora, sua expressão estava furiosa, os olhos gestando lágrimas que em

breve cairiam. As mãos amarrotavam a bolsa de pano, torcendo-a e

retorcendo-a, enquanto o crânio balançava-se de um lado para outro, na

medida em que ela falava, atrapalhando gradativamente o penteado.

- Agora vai dizer que a menina tem cara de que é minha amante... -

Disse, decididamente, com o tom superior que ela detestava, a

ironia dando voz a seu desdém.

- Não? Ligam lá pra casa todo dia e desligam...

- E daí?

- Isso é coisa de amante.

- Não. É coisa de desocupado. Mais provável ser coisa de quem não

tem um amante. Ao menos, não um que dê-lhe ocupação suficiente.

Por detrás das lágrimas, ela esforçava-se para argumentar:

- por que uma mulher ligaria e desligaria?Pra ouvir a minha voz? Pra

ouvir a voz da Morena?

- Pode ser tudo isso ou qualquer outra coisa. Pode ser porque nosso número é desagradavelmente parecido

com um número que ela nunca memoriza nem se dá ao trabalho de anotar em

lugar próximo do telefone.

- Como você soube que é "ela"?

- Você estaria tão irritada se um homem ligasse e desligasse, sem

falar nada? Pelo amor de Deus, você que decidiu que a pessoa que liga e

desliga sem dizer nada é a mesma que, segundo você também estabeleceu,

está me seguindo por ser minha amante.

- Mas eu não disse que é uma mulher! Meu Deus, Márcio, você tem

mesmo uma amante! - Concluiu, positivamente chorando, as unhas

encontrando um ponto de fissura na alça da bolsa e investindo contra

ela,

como se isso pudesse aliviar todos os seus problemas.

- E agora você está indecisa entre a autopiedade e o orgulho

ferido... Eu tenho mesmo que passar por isso?

Ao chegar em casa e descer do carro, Maria Cecília tinha desfeito

todo o trabalho artesanal que compunha a alça da bolsa que carregava.

...



Sentados à mesa, percebiam vagamente que a filha lhes contava

qualquer coisa.

- Então eu disse para ela não ligar mais. Ela acha o quê? Que eu

tenho a obrigação de fazer isso? O que você acha, pai?

Ele olhou-a, apalermado. Seu pensamento estivera posicionado em

algum ponto, quinze anos atrás. Olhou para a mulher, num pedido mudo de

auxílio. Ela não captou, mas morena, sim.

- Você nem ouviu! - Disse, soando magoada.

- Claro que ouvi, minha filha. Você queria saber minha opinião sobre

o Gustavo te ligar.

- Gustavo já era, já foi faz duas semanas! Eu estava falando da Bia!

- Você está apaixonada pela Bia? - perguntou a esposa, mesclando a

surpresa forçada com um pouco de sarcasmo.

A garota levantou-se, irritada, batendo com força o garfo no prato.

Não olhou para trás. Saiu da sala quase correndo. Ouviram a porta do

quarto bater.

- Olha aqui, menina, não bata a porta desse jeito! - Exigiu Maria

Cecília, levantando-se. - Foi essa a educação que eu te dei?

Ato contínuo, foi postar-se, irritada, diante da porta trancada, de

onde começou a vomitar sua indignação, derramando-a para a fechadura.

Uma do lado de dentro, outra do lado de fora, trocaram insultos por

quase uma hora, enquanto Márcio voltava a mente para os fatos do

passado.

De fato, houvera uma amante muitos, muitos anos atrás. Uma garota

jovem, mais jovem que o recomendável, com idade para ser sua filha,

mesmo àquela época.

Sempre fora professor e sempre sentira-se atraído por suas alunas.

Gostava da afeição fácil, da divinização inconseqüente. Gostava de saber

que era o alvo dos seus pensamentos secretos, que lhes despertava, desde

a ternura mais cândida, até desejos que elas jamais ousariam confessar.

Sempre soubera disso, mas mantivera-se afastado. Gostava das alunas -

achava-as bonitas - mas gostava da sua esposa e de ser uma espécie de

alvo inatingível, para suas admiradoras. Nele a satisfação estava mais

em encantar, que na consumação, propriamente dita.

Mas um dia, houve uma garota extrovertida demais e tímida de menos;

houve uma excursão e vinho escondido, vinho mais que o que seria

conveniente; mais tarde, os dois estavam extrovertidos demais. Na semana

seguinte, ele pedira demissão e nunca mais se permitira tamanho

desvario, fosse a garota em questão sua aluna ou não.

Quando voltara para a casa, Maria Cecília veio com a idéia de que

ele teria uma amante. Negou. Não admitiria, de jeito nenhum. Ela estava

grávida de Morena, por que a importunar? Além disso, ele gostava da

esposa e queria muito a criança por vir. Por que arriscar tudo, em nome

de uma aventura que fora mais do vinho que do espírito?

Mas, por algum motivo, ela não acreditou. Por Deus, não havia

indício nenhum, mas ela não acreditou. E, desde então, qualquer uma

poderia ser a amante pressentida.

Isso, claro, afetou o casamento e, logicamente, respingou na criação

da filha. Com os anos, ele sentia-se exausto, só de imaginar outra briga

daquelas. E agora, quando mãe e filha choravam diante da porta trancada,

ele perguntava-se o que podia ser feito.





***



Eu só o vi aquela vez e percebi tudo. A coisa toda foi mais sentida

que sabida. Fico me perguntando por quanto tempo vou suportar essa

situação. Não pode ser assim para sempre. Até pode. Minha mãe ficaria

louca se soubesse.

Nos últimos anos, pressionei com insistência. Quem é ele? Não tem

nem uma foto? Como foi? Vocês foram casados? Passei a idealizar e

dividir com ela todas as minhas fantasias. Seria um médico? Os dois

poderiam ter se apaixonado. Quem sabe ela tivera um acidente e ele a

socorreu e, então, não sei, algo como o que eu tinha lido em "Sonho de

uma Noite de Verão". Ou, quem sabe, um advogado? Sim, ele defendera

algum interesse da família, ou, vai ver, vira-se envolvido em uma

briga de trânsito e ela, por algum motivo misterioso, acabara por

defendê-lo, revelando sua vocação oculta e conquistando a admiração do

causídico. A admiração é um passo para o amor, ainda mais se for uma

admiração inesperada.

Cogitei do médico estar em missão em um daqueles países em guerra e

do advogado estar empenhado em construir um patrimônio no exterior, mas

minha mãe fazer segredo de tudo isso, por querer me surpreender com a

casa nos Estados Unidos.

- Nada disso. - Cuspira ela, um dia, irritada. - Foi só um

professor. Ele era meu professor. Um dia, bem, aconteceu, e ele foi tão

covarde, que nunca mais pisou na escola. Foi tudo.

Hoje fiquei atrás dela a manhã inteira. Queria contar o que tinha

acontecido e o que eu estava fazendo. Não consegui dizer nada.

Ela me olhava e eu ria. Ela acabou me mandando fazer algum serviço. Eu

fiz e só pensei no dia em que o vi pela primeira vez. Hoje eu não ia seguir ele. Pra quê? Já

sabia tudo. Só faltava descobrir o que fazer com tanto conhecimento.

Era mais fácil ficar só sonhando. Havia risco em contar para ele

tudo. Podia quebrar o encanto. Ele podia nunca mais querer saber de mim.



***



- Eu poderia falar com o professor Márcio, por favor?

- Você é aluna dele?

- ... Sou. - Mentiu, porque seria mais plausível que uma aluna

desejasse falar-lhe.

- O que quer que tenha pra falar com ele, fale na escola. Em casa,

ele tem mais o que fazer.

- Mas eu...

Apenas o sinal de ocupado lhe respondeu.



...





- Era só o que faltava! Uma aluna sua ligando pra cá. Pra que você

deu o telefone daqui pra uma aluna, Márcio? - Exigiu saber Maria

Cecília, enquanto retornava para a mesa de jantar, intimorata.

- Eu não dei o telefone pra ninguém. - Respondeu-lhe o esposo, com

um ar entre cansado e enraivecido.

- Ah, não deu. Ela então adivinhou...

- Pode ter visto na lista telefônica, mamãe. - Completou Morena,

jogando nela todo o azedume pela briga da antevéspera.

- Olha aí... Você está ficando neurótica! A menina pode ter visto na

lista. - Confirmou, endereçando à pequena um sorriso cúmplice.

- Sei. Com todos os indícios, você quer que eu acredite que não tem

uma amante.

Ao som dessas palavras, Morena levantou-se, outra vez, correndo até

seu quarto. Bateu a porta com força, antes que as paredes se desfizessem

totalmente do eco dos seus pés contra o piso da sala. Entretanto, após

alguns breves segundos, abriu a porta um pouquinho, para ouvir a briga

que começava, lá na sala de jantar.

Encolhida atrás da porta, as lágrimas pingando teimosamente, Morena

a tudo ouvia, indecisa sobre o que pensar. Crescera ouvindo que o pai

tinha uma amante e absorvendo todos os seus argumentos em contrário. Um

dia, era criança, ainda, abordara a questão com a franqueza que a gente

só tem até os dez anos de idade.

- Você tem ou não uma amante? - Perguntara, enquanto ele estrelava

ovos para os dois.

A mãe estava na Universidade - ainda fazia universidade, na época -

e ela sabia que teriam tempo disponível.

- Não, Morena.

- Mas por que mamãe vive dizendo que tem?

- Porque ela acredita que tem.

- Mas é mentira?

- É. - Afirmara ele, desligando o fogo e retirando a frigideira da

boca fumegante. Morena ainda lembrava-se do barulho que o óleo fazia,

enquanto a panela era erguida.

- Então, por que você não diz isso para mamãe?

- É o que eu faço, Morena, todos os dias.

Agora, lá na sala, a briga continuava.

- A escolha é sua, Maria Cecília. Vai estragar outra vez a noite de

nós três por causa de uma amante imaginária?

- Não é imaginária! - proferiu ela, levantando-se da mesa,

empurrando a cadeira com o calcanhar.

- Pelo amor de Deus, é! Se eu tivesse uma amante, ela teria, na

melhor das hipóteses, meu telefone celular, não o telefone de casa.

- Você acha que eu sou uma idiota por...

- Pára, agora, você vai me escutar. - Impôs ele, também de pé, as

duas mãos firmemente plantadas nos ombros magros da outra.

- Vai fazer escândalo na frente da Morena?

- Ah, não, a noite é sua. - Disse, o tom abaixando, tornando-se

perigoso. - Se você tem o direito de dizer esses absurdos na frente da menina,

eu tenho o direito de dar minha resposta. Continuando, se eu tivesse uma

amante, seria mais inteligente lhe dar meu telefone celular; se eu

tivesse uma amante, ela não precisaria me seguir, porque já se

encontraria comigo; se eu tivesse uma amante, acredite em mim, eu jamais

seria tão primário. Em boa lógica, se você for bastante imaginativa,

poderá supor que a garota que você viu no trânsito e na escola está me

seguindo, e que é ela quem liga e desliga, aqui para casa. Nesse caso, o

mais provável é que ela esteja apaixonada por mim, por isso essa

aproximação pela metade. Quem já tem o que quer, não usa desses

artifícios.

Ao som daquelas palavras, Morena tornou a fechar a porta. Na ponta

dos pés, como se pudesse desencadear qualquer cataclismo por se fazer

ouvir, ela foi até a cama. Deitou-se sem retirar os sapatos e

encolheu-se, em posição fetal.

O telefone tocou. Ela ouviu, pela extensão que ficava em seu quarto.

Antes que ele alertasse os litigantes lá na sala, ela atendeu.

- Alô - Fez, colocando na interjeição uma miríade de perguntas.

A outra deve ter encontrado tanta tristeza por trás da voz, que não

desligou. Silêncio. Respiração. O despertador na mesinha do

quarto de Morena tiquitaqueava.

- Você é a aluna que ligou aqui pra casa? - Arriscou, sem esperança

de ouvir resposta.

- Acho que sim - Fez-se ouvir a voz. Era insegura como a dela,

instável, quase pueril.

- Ah... Você quer falar com o meu pai?

- Não, eu... Estava com uma dúvida, mas já... Resolvi.

- Bom pra você, então.

- É. Tchau.

- Tchau. - Fez a garota, ouvindo o sinal de ocupado.

Colocou o telefone no gancho e secou os olhos.



***



Chorei a noite toda. Acordei com o olho vermelho. A mãe quis saber o

que era. Nunca eu ia dizer. Ela não podia saber assim. Fui pra escola e

lembrei de quando o vi chegar pela primeira vez. Fiquei tão

impressionada... Só foi uma vez. Estava substituindo outro professor.

Só foi uma hora e foi suficiente. Eu soube de tudo. Vi tudo em um

segundo. Como dizer para ele que eu sempre o esperei? Como falar que eu

o imaginava entrando pela nossa porta, em cada noite de natal? Que

esperara um cartão, em todos os dias de meu aniversário? Como fazer-lhe

todas as perguntas que eu queria ali, com todas aquelas pessoas olhando?

Eu não queria saber do passado, como tinha sido, como tinha deixado de

ser. Queria saber do presente. Ele gostara de crianças? Teria gostado de

mim? Poderia gostar de mim?



***



Ela decidira chegar mais cedo. Há anos que ele começava casos e

parava, começava e parava, quando bem entendia. Bem, daquela vez, seria

diferente: ela daria o basta, não ele. Quem sabe, se ele a visse

intervindo de forma tão direta em lugar de simplesmente assistir,

passasse a ter-lhe mais respeito?

Sentia-se aviltada por ele, por aquelas traições sucessivas. Ela não

tinha provas, era verdade, mas as sentia nas virações do ar, no sangue,

na própria pele dele. Sentia-se aviltada pela traição e pior não ser

capaz de divorciar-se. Transferia suas razões para a filha, mas não era

verdade. Gostava de saber que só ela o tinha de direito. Mas não parava

por aí: gostava quando estavam juntos, da forma como ele a conduzia à

patamares indescritíveis de volúpia e sensações.

Naquele momento, deixou que toda a raiva por si mesma se revelasse

nas palavras que disse à garota de cabelo despenteado que estava na sua

frente.

- Oi. Eu sabia que você estaria aí, na porta. Toda segunda você vem. Pensa

que eu não percebi que você está de olho no meu marido?

Os olhos da outra arregalaram-se, com um pasmo que quase pareceu-lhe

sincero.

- Eu não...

- Pensa que eu não sei que você liga pra minha casa, que você segue

meu marido quando ele sai do trabalho? Uma menininha novinha como

você... Deveria se dar ao respeito... - E, ao falar com ela,

parecia-lhe estar vingando-se de todas que a precederam.

- A senhora está pensando que... - Seu rosto era vívida confusão, a

expressão espelhando vergonha e horror. A voz saía-lhe agora em um

murmúrio tenso e consternado.

- Em que série você está?

- Sétima...

- Não minta pra mim!!! Eu sei que você é aluna dele e que ele dá

aula em cursinho.

- Mas eu não sou aluna dele. Eu...

Márcio viu as duas metros antes da porta, bem como o ajuntamento

crescente de alunos. A voz alteada da esposa, o tom assustado e quase

inaudível da outra. Pela primeira vez, pôde olhar a menina. No meio das

outras alunas, podia passar-se por apenas mais uma, mas, agora, com a

esposa indicando qual era, podia olhá-la, ao tempo em que se aproximava.

Era jovem demais para ser sua aluna. O rosto delicado, decididamente

infantil. Os cabelos escapando de um rabo de cavalo que parecia ter sido

feito no começo do dia, as sobrancelhas muito finas, o nariz pequeno, a

boca delicada, as bochechas cintilante de lágrimas.

- Maria Cecília, o que é isso? - Perguntou, assim que juntou-se às

duas. A mão pousou, instintivamente, nos ombros da menina.

- Estava proporcionando um pouco de educação doméstica a essa menina.

- Educação? Meu Deus, o que você está fazendo?

- Eu quero saber onde a gente se perdeu, Márcio. Em que momento nós

decaímos tanto, que você se sentiu atraído por uma menina que bem podia

ser amiga da sua filha! - Essas palavras foram gritadas, acompanhadas

por uma torrente de lágrimas.

Em redor, alunos e professores formavam um círculo mais ou menos

delineado, o silêncio rodeando-os como uma entidade viva.

- Agora chega. Maria Cecília, você precisa de tratamento. Entra no

carro e vá pra casa.

- Sem você?

- Sim. Agora sou eu que quero tirar essa história a limpo...

- Hipócrita. Pensa que eu vou acreditar que...

- Por favor, mantenha a boca fechada, para eu não ficar ainda com

mais raiva de você. Se queria chamar a atenção, conseguiu: há cerca de

quinze alunos meus olhando para cá, mais alguns companheiros de

serviço, caso ainda não tenha reparado.

Portanto, entre no carro e vá pra casa.

- E deixo você de conversinha com essa...

- Maria Cecília... Ei, espera!

Por um motivo que jamais soube explicar, a garota desvencilhou-se

dos dedos dele e saiu correndo. Atravessou o círculo de expectadores

que, surpresos, sequer tiveram tempo de esboçar um gesto que a pudesse

deter. Com a agilidade triplicada pelo medo e pela vergonha, saltou

sobre a bicicleta, pegando o caminho para casa.

- Vai correr atrás dela, agora? - Desafiou a mulher, a voz mesclada

de triunfo e desafio.

- Entra no carro. - Decretou, o tom pouco acima de um murmúrio.

- Pra você ir correndo atrás dela?

- Não a pegaria, de qualquer modo. Ela está em uma bicicleta e eu

estou a pé. De mais a mais, caso não tenha se dado conta, você está segurando as chaves do carro. Venha, vamos os dois para casa.









***



Corri muito. Nem olhava bem por onde corria.

Cheguei em casa e varei o portão. Não via nada. Parecia

ainda ver ela gritando aquelas coisas e as pessoas se aproximando para

ouvir. Nem tinha forças pra chorar. Então ele chegou e toda falta que

ele nunca fez pareceu vir a meu encontro. Era como se tudo brotasse dos

bueiros e do asfalto. Ele estava lá: sonho real na minha frente; e ela

entendendo tudo errado. Ele me olhando. Um segundo imenso. Era a

primeira vez que ele olhava de verdade para mim. O toque no meu ombro,

estranhamente protetor. Quanta coisa eu quis

dizer! Mas só sabia chorar. Tanta vergonha... Todas aquelas pessoas

olhando...

Talvez ela fosse embora e ele falasse comigo. Mas eu não podia

esperar. Tive medo de lhe dizer um monte de besteira. Agora sei que

jamais terei coragem de procurá-lo. Agora ele tinha outra família; uma

família que eu poderia estragar. Não podia correr esse risco nunca.

Agora eu sei que passará muito tempo até que eu tenha coragem de

procurá-lo e chamá-lo de "pai". Então, quando e se finalmente eu o

fizer,

pode ser que eu ouça dele muito

mais que um alô. Pode ser que ele me reconheça como eu o reconheci. Pode

ser que ele me chame de filha.

Ossos do hospício

A turba humana ali apresentava-se mais densa que qualquer uma que ele pudera

ver até então. Os rostos

passavam em uma azáfama tão grande, que lhe resultava impossível

fixar-lhes os traços. O que ficava na retina, era uma

impressão geral de mal-estar, desmazelo, abandono e sufocamento.

Bramidos, exclamações desconexas, urros e gemidos dilacerantes compunham

uma cacofonia, no mínimo, perturbadora. A atmosfera geral era

irrespirável.

- O senhor está certo de que me disse que iria presenciar algo belo?

- Perguntou Mariano.

Era jovem, no corpo que deixara e nas suas experiências naquele

novo lugar. Os olhos negros e maliciosos, o rosto oval, queixo pontudo.

Estatura mediana, parecia estar sempre disposto a encontrar uma saída

bem humorada, ainda que irônica. Não obstante isso, estava empenhado nos novos aprendizados e

possuía uma fé ardente, embora não se soubesse precisamente em quê. Fora

biólogo, na Terra, e agora, desde há alguns anos, estava por aquelas

paragens. Deixado aos cuidados de Euclides, um dos instrutores do

lugar, fazia rápidos progressos, ainda que seu sentido permanente de humor

o fizesse, algumas vezes, ser precipitado e levemente superficial.

Ao questionamento do outro, o instrutor apenas adotou uma expressão

séria. Mariano silenciou. O que quer que fosse, precisava acabar logo.

Sem dúvida, o ambiente o estava afetando negativamente, e ele

pilheriava para buscar imunidade às suas emanações.

- Não faça isso. - Murmurou o outro, a mão suavemente pousada sobre

seu ombro, os olhos de repente olhando-o como se pudessem radiografar

tudo que estivesse na mente dele. - Às vezes, é preciso deixar-se impregnar.

Aos signos de surpresa na atitude do pupilo, atalhou:

- Não me refiro, naturalmente, a aceitar-lhes as disposições

íntimas, mas a procurar perceber o que eles sentem. Consegue fazer isto?

Fosse qual fosse sua resposta, ele não teve tempo de a proferir, porque, inopinadamente, todas as

atenções foram atraídas para alguém que acabava de chegar. Era um dos

homens mais altos que Mariano vira, neste e no outro mundo. Os olhos de

um perfurante azul, pareciam ser o único ponto minimamente razoável na

sua aparência,

dado a estranheza do restante do conjunto. Seus cabelos eram revoltos e

tingidos de um vermelho muitíssimo vivo. As roupas, aparentemente largas

e coloridas

demais, pareciam ter sido confeccionadas com o único

objetivo de atrair a atenção. Sua gravata descomunal estava toda pintada

com motivos do Rio Grande, do mesmo modo que todos os itens do seu

vestuário

pareciam fazer alusão àquela região. O indefectível lenço encarnado

quase envolvia-lhe os braços, partindo do pescoço no qual fora

habilmente colocado.

As botas, indo-lhe até aos joelhos, tornavam sua

aparência, ao mesmo tempo, mais palpável e mais irreal. Entretanto, ele não apenas usava

aqueles trajes; desejava fazer deles uma espécie de bandeira, de

chamariz, fosse pela forma como os ostentava, fosse pela confecção, em si.

De alguma maneira, o efeito parecia exagerado, pouco natural e,

sem margem para dúvida, irresistivelmente risível.,

O riso, entretanto, demorava a sair, tal era o inesperado da

situação. Mariano olhava, confuso, do recém-chegado para seu mentor,

inseguro sobre o que perguntar e, até, sobre o que pensar em seguida.

Foi então que percebeu que, dentre os recolhidos àquele lugar, ocorria um fenômeno ainda mais

inesperado que todo o resto: lentamente, as pessoas foram silenciando,

e algumas expressões tornaram-se mais suaves. Aquela mulher, que era

contida por uns no esforço de comer suas próprias carnes, e incentivada

a fazê-lo por outros, simplesmente quedou-se no chão, misteriosamente

pacificada; aquele homem, que corria em volta de si mesmo, supostamente

procurando por um parente há muitos anos perdido, parou,

apaziguado; o ancião que, aparentemente, fugia de

perseguidores invisíveis aos demais, convergiu para o meio dos outros,

tentando ver melhor o recém-chegado.

Mariano não conseguia parar de observar. Vivia um daqueles momentos

em que é impossível tirar conclusões, restando-nos apenas observar e

esperar.

Subindo em um banco de palha desnecessário, mas aparentemente ali

colocado para este fim, a figura alta do recém-chegado pareceu

destacar-se ainda mais.

- Bueno... É danado de bom que todos vocês estejam aqui, mas falta

trazer cá os amigos das outras coxilhas. Não se pode fazer nada sem a

locaiada completa.

Como se aquelas fossem palavras mágicas, correntezas humanas

convergiram de diversos pontos, entrechocando-se, fundindo-se e

confundindo-se com a platéia original. Os signos de insanidade mental,

entretanto, agora dividiam lugar com uma alegria infantil e,

indiscutivelmente, genuína.

Do alto da sua tribuna improvisada, ele fazia gestos a todos e a

cada um, em particular. Parecia conhecê-los um a um, e distribuía comentários

dirigidos a algumas pessoas, chamando-os pelo nome.

Em seguida, entretanto,

levantou os braços, e todos silenciaram. Pareciam esperar um

acontecimento solene.

- Vale... Vamos, então, realizar a semi-final do nosso campeonato de

cuspe a distância, pelo que seria interessante que todos abrissem

espaço... Abrindo, abrindo, abrindo... Bah, que gurizada mais lenta!

Vamos, vamos, que além deste campeonato, temos mais três... Então...

Eu quero aqui, no meio, só os nossos amigos que vão provar seu valor.

Alberto, Marcelo, Pedro Henrique e Aldegundes.... Que coisa mais triste,

meus amigos, apenas uma mulher mostrou-se emérita cuspidora..

Com isso, bem se pode dizer que não têm praticado nada.

Os quatro aproximaram-se. Era bem possível que aquela fosse a

primeira vez em que articulavam um pensamento coerente, em todo o dia.

Em seguida, para espanto absoluto de Mariano, o homenzarrão sobre o

banco pôs-se a narrar e orientar aquele que, aparentemente, era o

principal divertimento do grupo. Dez minutos e oito cusparadas mais

tarde, ele deu-se por satisfeito. De repente, parecia que todos

estavam ali apenas para se divertir, que nada de errado havia com eles.

Ao concluir o primeiro campeonato, realizaram a primeira fase do

"campeonato dos imitadores", que foi conduzido com indescritível bom

humor. Se as imitações não eram sempre convincentes, as coisas que se

propunham imitar possuíam, sem dúvida, um humor irresistível, de modo que

Mariano não se surpreendeu ao ver que o próprio instrutor se entregava

ao riso geral.

Quando as brincadeiras terminaram, porém, fez-se sério, de uma forma

que quase assustou aos que não o conheciam.

- A nossa rádio ao vivo deste maravilhoso hospício vem, por meio

deste momento, anunciar o retorno à carne de alguns amigos... Que as

bênçãos do nosso índio velho mais querido possam recair sobre eles,

dando-lhes coragem na vida braba que os espera lá embaixo...

E leu os nomes, em um tom fúnebre. Em seguida, anunciou:

- Mas como tudo não é igual pra todo mundo, queria anunciar a

chegada para breve de alguns amigos, finalistas do grande concurso da

vida que precisarão dar uma passadinha no nosso mui querido locômetro.

Leu os nomes com um ar introspectivo e, com duas ou três tiradas de

humor inesperadas, desceu da tribuna.

Num átimo, foi totalmente cercado, a figura alta e espadaúda

sobressaindo de um mar de rostos.

- Quem você pensa que ele é? - Indagou Euclides, fitando seu

interlocutor de tal forma, que parecia que conseguiria uma resposta,

mesmo que, porventura, ele se negasse a falar.

- Um louco, sem dúvida. - Proferiu o outro.

- Por quê? - inquiriu.

Mariano pensou. De repente, havia tantos motivos, que lhe era

difícil saber por onde começar.

- Bem, ninguém usa uma gravata que vai até aos joelhos. A mescla de

locutor de rádio com narrador de rodeios e apresentador esportivo,

parece não deixar dúvidas. Entrar em um antro de dor como este e agir

como se estivesse diante de uma platéia de circo, é quase ofensivo e,

para completar, ninguém, em sã consciência, narra um campeonato de

cuspes, um de imitações canhestras, outro de corrida no saco em uma

noite só.

- O amigo então preferia que eu fizesse cada qual em um dia

diferente? Eu já tentei, mas fica difícil reunir a locaiada... O efeito

não é o mesmo... Mas não me olhe com esse jeito de piá pego fazendo o

que não devia, eu que me intrometi na prosa de vocês dois, porque dei uma escapadela para apertar os ossos desse

índio querido de longa data...Mas que que isso, Euclides! Esse teu pupilo ta

mais escarlate que china beijada pela primeira vez... Não faça

caso de nada disso, amigo...

E, em seguida, passou a conversar com o outro.

- Grande Euclides... Que tal as coisas no Educandário? Muita

gurizada empenhada por lá? Esse povo chega cada vez mais espavorido da

terra... Antigamente, nos tempos em que eu era guri lá em Passo Fundo, a

espiritada fazia desligamento... Agora, parece que têm que fazer quase

que uma amputação... Como o povo tá difícil de sair! Não querem se

desgrudar das roupas velhas de jeito nenhum... Se bem que, claro, sempre

existem casos que desmentem.

- O que vai acontecer com eles agora? - Ousou interromper Mariano,

fixando o olhar na turba que ainda continuava de pé, há pouca distância

dos três.

- Ah, eles? Filho... Alguns vão guardar como preciosidades as

vibrações e as lembranças dos momentos que passamos aqui. Outros,

receio, vão voltar aos quadros mentais em que estávamos quando nós

começamos o "show". Bem, mas cada qual tem seu tempo, e o tempo de cada

um chega,

de um modo ou de outro, do mesmo jeito que sempre chega pro relógio a

hora que a gente espera.

- Mas isso é como um ópio... - Disse Mariano, arrependendo-se, em

seguida.

- Ah... Tu sabe que pode ser isso mesmo? Gostei, guri. A alegria é

um ópio ou um bálsamo, depende de como tu vive. Agora, chego pra longe,

que o tempo é pouco.

Foi

um prazer prosear com vocês, mas ainda tenho três campeonatos pra

elaborar daqui até o finalzito da noite.

E, apertando a mão aos dois, pareceu esfumar-se no ar, como que

tragado pela multidão e pelo interior da Terra.

Quando não puderam mais vê-lo, Euclides convidou Mariano

para sair daquele lugar em que, visivelmente, a atmosfera caótica

retornava, lentamente.

Já longe dali, acomodados em um dos muitos bancos de uma das várias

praças daquela zona, Euclides arriscou:

- E então, o que pensa dele?

- Eu não sei. Acha que ficou chateado com o que eu disse?

- De modo algum. Pareceu?

- Não, mas...

- O constrangimento foi seu, não dele. Ainda acha que ele é um

louco?

- Eu não sei.

- Mauro, é esse seu nome. Um grande trabalhador... Esteve no Educandário

faz, o quê? Uns quatrocentos anos , creio...

- Mas...

- É trabalhador do hospício de onde saímos.

- Mas... Pensei que fosse interno...

Ao som dessas palavras, Euclides ofertou-lhe um sorriso que

transmitia, ao mesmo tempo, condescendência e afeto, no qual todo o

rosto tomou parte.

- Nem todos podem fruir as primeiras letras da espiritualização da

mesma forma. Há uns que estão tão encharcados pelas impressões da vida a

que se dedicaram, que não comportariam, por exemplo, uma interação como

a que desfrutamos, agora.

- Mas...

- Cada qual recebe o alimento de que precisa. Os mesmos nutrientes,

as mesmas vitaminas, podem ser administrados de diversas formas, desde

sopas quase líquidas, até manjares mais elaborados. Mauro dá-lhes o

alimento espiritual que podem obter, no momento.

- Mas com toda aquela irreverência...

- A alegria também constrói, Mariano. Há que se ter bom senso, como

em tudo, mas também lá podemos encontrar elementos sublimes, que curam,

libertam, refazem e sublimam. - Fez uma

pausa, repleta de significado, ao fim da qual continuou: É preciso que se

tenha muita humildade para submeter-se ao julgamento dos que não estão

familiarizados com as necessidades desses irmãos e para conduzir

corações ligados, muitas vezes, à loucura pelo mal, até a ingenuidade de

uma brincadeira inócua. Para muitos deles, Mariano, sentir prazer com algo assim

é coisa francamente inédita.

- Ele não é louco, então?

- Não. Por muitos anos, dedicou-se a trabalhos árduos e a estudos intensos, para ter condições

de laborar junto ao seu filho, imerso por séculos a fio nas trevas mais

densas. Cem anos foram necessários, até que sentiu-se preparado e teve a

permissão para o ajudar pessoalmente. Tentou tocá-lo de todas as formas

possíveis, desde os intercâmbios mais repletos de lógica e senso, até

mesmo tentando acordar nele as mais ternas lembranças, mas não obteve

êxito em qualquer dessas tentativas. A ternura e a razão sossobraram,

ao final, confrangidas por uma dureza d'alma que não permitia idéias

sutilizadas sob nenhum conceito. Seu coração era como uma caverna

escura, onde não entrava sequer uma réstia de Sol. Sentia-se frustrado

por ter esperado tanto por aquele momento para, depois, não obter

qualquer êxito.

- E então?

- E então, um dia, teve essa brilhante idéia. Vestiu-se com os

símbolos de sua última encarnação e com uma boa dose de espalhafato e desceu aos abismos trevosos para

fazer humor às portas das furnas. Foi ridicularizado, humilhado,

brindado com todos os apodos desonrosos de que se puderam lembrar, mas

conseguiu fazê-los rir. E tal era seu talento, e tal era sua

determinação, que, dentro de pouco tempo, muitos dos que ali estavam

paravam para o escutar. Participaram dos seus campeonatos inocentes,

porque, por pior que seja o homem, guarda, em algum lugar, dentro de si,

algo da criança que foi um dia... E, entre uma brincadeira e outra,

enxertava conceitos superiores, armado de uma linguagem coloquial, em

que realismo e humor se misturavam de forma exemplar. Foi assim que

resgatou muitos deles e trouxe-os para as câmaras de alienados daquele

setor...

- E o seu filho, veio também?

Euclides respirou fundo, antes de responder, os olhos fitando na

direção de onde voltaram, fazia já uns bons minutos.

- Ah, sim. O seu filho sou eu.

Cidadania

Sentia orgulho ao pensar em si mesmo como um homem de educação

refinada, um perfeito cavalheiro.

Não era com esforço que admitia a idade chegando, os anos de moço se

desfazendo em um punhado de lembranças de um tempo que, agora, não

passava de nítidas ou desbotadas recordações. Não obstante, esforçava-se para encarar a

velhice recém-chegada com o mesmo senso objetivo e razoável que o caracterizara

em todos os momentos da vida. Entretanto, a mesma tranqüilidade com que

percebia a idade avançando não chegava para observar o mundo no

qual estava imerso.

No que lhe dizia respeito, as coisas não estavam boas.

Traziam, isso sim, os piores

augúrios, as mais sombrias impressões, que eram, segundo seu ponto de

vista, confirmadas aqui e a li, por fatos que multiplicavam-se mais

rápido que a sua habilidade de contá-los.

Cumprindo com seu dever fisiológico de poluir o rio local, Doroteu

pensava tudo isso, olhando, sem ver, as letras do jornal que segurava,

enquanto a mente distanciava-se cada vez mais do ambiente em que seu corpo

estava.

Lembrou da sua filha, sem marido nem paradeiro certo, trabalhando como

fotógrafa de uma revista, quase sempre em algum avião, rumo a qualquer

lugar desconhecido e vagamente ameaçador. Daquela vez, porém, ela não se

dirigia a nenhum país remoto. Viajava para lá mesmo, para a sua casa, e

a qualquer momento apertaria a campainha e irromperia pela sala, com suas

roupas espalhafatosas de tons quase sempre berrantes, o cabelo em um penteado de mau gosto,

usando, na opinião do pai, maquiagem demais para uma moça decente.

Entretanto, com tudo isso, ou apesar de tudo isso, Morgana era uma

moça decente.

Deixando o jornal despencar em um amontoado de seus iguais sobre uma

banqueta improvisada, ele inclinou-se para a papeleira, ao mesmo tempo

em que a campainha soava, incontinente.

Foi quase com um único movimento que descartou a higiene que, para

ele, era sagrada, recompôs-se e empurrou o botão de descarga.

Parece que foi também no mesmo segundo que a campainha retiniu, pela

segunda vez.

Ficou um pouco surpreso com o nível da sua ansiedade,

percebendo, quase sem se dar conta, que os comentários pouco lisonjeiros

que tecera a respeito da filha , vinham de algum mecanismo do subconsciente

para minorar a expectativa e o incomodo inerente à espera.

Atravessou a sala em largas passadas. Escancarou a porta, já com os braços

abrindo-se, só para ver um vulto miúdo e gargalhante voando, ladeira

abaixo, despreocupado e irresponsável.

A raiva subiu-lhe à mente, enquanto ele praguejava sozinho, voltando

ao banheiro, para concluir o que não fizera. Quando abria a tampa da

latrina e tornava à posição inicial, a campainha soou outra vez.

Novamente vestiu-se, a raiva esfolando a superfície de homem civilizado,

um dos últimos cavalheiros que existiam, nos tempos recentes.

Abriu a porta e já foi gritando, o vozeirão projetando-se rente à

mesma ladeira que o garotinho cruzara, poucos minutos atrás. Alguns

instantes depois, percebeu o absurdo do que fazia, ao tempo em que

aqueles olhos, castanhos e intensos, fitavam-no de alto a baixo,

inquisitivos, assustados, mas algo divertidos.

- O senhor está tão bravo assim com minha chegada, pai, a ponto de

acabar com a minha raça?

O abraço que deu à filha perdeu um pouco do vigor pela vergonha que

corava suas faces. A porta aberta, a moça dentro de casa, olhava-a,

constrangido e feliz, vendo-lhe o cabelo tricolor, a antiga argolinha no

nariz, o corpo esguio, os olhos intensos e francos, arredondados

suficiente para que tivesse uma perpétua expressão de surpresa, as

várias pulseiras que usava capturando reflexos fugidios do Sol que já

se punha.

- Pelo amor de Deus, o que houve? - Inquiriu a recém-chegada,

arrastando a mala de rodinhas pelo chão imaculado da casa de Doroteu.

Se a narrativa que ouviu tivesse sido feita por outro homem qualquer,

Morgana ter-se-ia vergado de tanto rir, em parte, porque a coisa toda

era bastante engraçada, em parte por que, a maioria das pessoas, quando

consentia em partilhar com os outros algo assim, esperava justamente

essa reação, talvez como forma de perder a vergonha pelo que acontecera.

Entretanto, o tom sério e ultrajado de seu pai não dava azo a essas

expansões, de modo que foi uma Morgana quase contrita que ouviu a curta

história, sentindo as notas de indignação e rancor na voz paterna.



- Ah, fala sério, pai, é só uma criança!

- Que vai crescer e ser um homem, em um futuro próximo. Será que não

percebe, Morgana, que é nessa idade que se aprende a ter respeito pelos

outros?

- Não seja tão radical! a VIDA É LONGA, ELE VAI TER TEMPO DE SOBRA PARA

APRENDER RESPEITO. aLÉM DO MAIS, COMO O SENHOR ESPERAVA QUE ELE

Adivinhasse o que estava fazendo?

- O fato de não poder adivinhar é um dos muitos motivos que fazem com

que seja uma atitude reprochável, minha filha. Grosseira, de péssimo

tom, desnecessária, inconveniente...

Com algum custo, Morgana acalmou o genitor, fazendo cintilar as

pulseiras de seus braços quando estendia as mãos para o tocar. Como

um menino manhoso e como o velho que se estava tornando, Doroteu

recebeu os carinhos com fingida contrição, parecendo ignorar o prazer

evidente que escapava de seus olhos.

NO dia seguinte, esperava a filha, que fora enviar umas fotos pelo

correio.

Estava ansioso por sua chegada, novamente

sentado no vaso sanitário, quando a campainha tocou. Pego de surpresa, ergueu-se de

qualquer modo, sem sequer puxar a descarga, ajeitando a roupa enquanto

cruzava a sala.

Ao abrir a porta, viu, outra vez, o vulto magricela e gargalhante

descendo a ladeira. Teve uma brevíssima visão daquele pivete, anos

crescido, tornando-se mais ousado, jogando garrafas cheias de

excrementos no seu quintal, ou apertando a sua campainha quando

retornasse

de algum lugar pouco recomendável, depois das três da manhã. Decidiu,

portanto, cortar o mal pela raiz. Usando de todas as suas forças,

disparou ladeira abaixo, os chinelos ressoando ameaçadoramente pelos

paralelepípedos. AO ruído de corrida, vizinhos foram assomando às

janelas e portas das casas. As possibilidades de Doroteu pareciam nulas, até que o

garotinho tropeçou e caiu redondamente, o cotovelo encontrando, sem

reservas, o chão áspero do final da ladeira.

Doroteu aproximou-se, abaixou-se e ergueu o menino pelo colarinho,

sem contemplações,

obrigando-o a levantar-se. Em seguida, arrastou-o ladeira acima, sem dizer

palavra, irritado até quase o limite, certamente, tão irritado quanto

poderia ficar um verdadeiro cavalheiro.

Alguns vizinhos davam risadinhas mal disfarçadas quando ele chegou à

casa, empurrou o menino lá para dentro e trancou o portão e a porta.

Logo que se viu dentro da casa do velho, o garotinho, que não devia

ter mais que sete anos, sentou-se em uma cadeira, sem que para isso

tivesse recebido qualquer convite. Por algum motivo oculto, isso

multiplicou a ira do velho, que voltou a erguê-lo pelo colarinho,

dizendo:

- Nunca lhe ensinaram que se deve esperar um convite para sentar?

O garoto piscou, parecendo assustado, o peito magro subindo e

descendo às exigências de uma respiração descompassada. Sua mão sangrava

debilmente, mas nenhum dos dois parecia se importar.

- O telefone da sua mãe. - Exigiu Doroteu, os olhos perfurando as

órbitas do infante.

O garotinho abriu a boca, confuso e assustado, as lágrimas bordejando-lhe

as pestanas negras.

- Ah, por favor, moço, faz assim não, eu juro que não faço mais,.

- É a conivência com o mal que gera os criminosos. - E, em

seguida, em um tom muito mais alto e quase descontrolado, reiterou o

pedido, enfatizando-o com um contundente e nada cavalheiresco soco na

mesa.

O pequeno tremeu, agora sem tentar reprimir as lágrimas. Doroteu

apenas continuou a olhar, como se estivesse esperando. A autoridade do

mais velho ganhava campo, minuto a minuto. Depois de alguns

momentos, os lábios do inesperado visitante mexeram-se com relutância,

mal vocalizando os oito dígitos.

Embora esperasse por aquilo, começou a soluçar, quando o

homem estendeu a mão para o aparelho e começou a discar, grossas bagas de

suor escorrendo-lhe da testa, provavelmente pelo esforço da corrida

recente.

- Qual o nome da sua mãe? - Exigiu, interrompendo-se bruscamente.

O nome foi soprado na direção dele, enquanto recomeçava a discar,

assentindo vagamente.

- Alô... - Fungadelas. - Dona Beatriz? Olá, dona Beatriz. Sinto

muito por incomodá-la. Eu sou

Doroteu Dornelas, seu vizinho... - ... Débeis soluços... - Ah, não, está tudo bem... OU melhor,

quase tudo bem. Sim, eu estou bem. Escute, dona Beatriz, eu estou aqui

com seu filho em minha casa, e gostaria muito que a senhora me cedesse

alguns minutos do seu tempo, para conversarmos um pouco sobre ele. ...

Certamente a senhora entenderá... Eu prefiro tratar do assunto

pessoalmente. Sim... #Compreendo. Nesse caso, vamos esperá-la aqui, os

dois...



Ao depositar o fone no gancho, os olhos de Doroteu foram

instintivamente atraídos para o relógio que estava dependurado na

parede, marcando, com preguiça, dez minutos para as seis da tarde. Dez

minutos vieram, um por um, e perderam-se, na vasta coleção dos momentos

inúteis, até que a campainha soou, mais uma vez.

A porta aberta revelou Morgana que retornava, os cabelos agitados

pelo vento, as três cores misturadas, o ar lépido e faceiro de quem está

muito feliz com a vida e consigo mesma.

Seu olhar abarcou, em uma rápida sucessão, toda a estranheza da

cena, e sua saldação foi substituída pela pergunta que lhe pareceu mais

natural:

- O menino machucou aonde?

A alegria do pai foi substituída por um discreto ciúme por ter sido

o pequeno infrator o principal alvo da sua atenção, até então.

- Ele estava correndo de mim. - Disse, um ar desafiador nos olhos

que a encararam. Continuou:

- Eu estava correndo atrás dele, como facilmente pode deduzir,

porque ele apertou minha campainha.

A gargalhada que veio a seguir aliviou a tenção do garoto e plantou

a carranca mais assustadora na fisionomia do velho homem.

- Espera aí, o senhor está me dizendo que saiu da sua casa, para

perseguir um menino que apertou sua campainha e correu, é isso?

Os dois envolvidos acenaram, os gestos iguais não podendo ser mais

dicotômicos nas expressões que desenhavam em um e no outro.

- Pai, quem aqui é a criança, o senhor ou ele?

O intenso ar de reprovação nasceu e foi varrido do velho pelo

retinir da campainha. Os três levantaram-se, mas foi o anfitrião que

abriu a porta.

Beatriz entrou, tentando, sem sucesso, abarcar toda a

situação, enquanto colocava uma delicada bolsa sobre a mesa.

- Alex, meu filho, o que foi que aconteceu? - Perguntou ela,

lançando-se na direção do garoto.

As lágrimas renovaram-se nas pálpebras do interpelado, enquanto um

fungado, que mesmo à Morgana soou artificial, escapou, por entre as

palavras que disse a seguir:

- Ele correu atrás de mim.

A recém-chegada olhou o dono da casa , momentaneamente aturdida demais para dizer

fosse o que fosse. Doroteu empertigou-se todo, tentando assumir o controle

da situação.

- Peço que me desculpe, minha senhora. Vou explicar toda a situação.

Seu filho anda com o desagradável hábito de apertar a campainha dos

outros e sair correndo. A senhora

há de convir que esta é uma atitude bastante desrespeitosa, desagradável

e indelicada, podendo, caso não seja corretamente suprimida, abrir

passagem a outras manifestações de desrespeito, possivelmente mais

agressivas e menos inocentes.

Morgana retirou o olhar cúmplice que endereçava furtivamente ao

menino. Então era isso? Agora era a vez da mãe empertigar-se:,

- O senhor prendeu meu filho aqui, fez questão de me tirar da minha

casa, do meu merecido descanso, para me fazer vir aqui buscá-lo por

causa disso? Tenha a santa paciência!

O garoto acompanhava o diálogo vidrado, como se assistisse a uma

partida disputada e interessantíssima. Morgana olhava para baixo, algo

entre admirada e constrangida com a situação.

- Dona Beatriz, meu senso ético não me permite concordar com a

senhora. Sei que, como mulher inteligente, sabe que muitos dos maus

hábitos que envergonham os pais na juventude de seus filhos tiveram sua

gênese em pequenas travessuras infantis, nas quais eles denunciaram sua

falta de percepção sobre os verdadeiros limites do bom tom e da ética.

Na ocasião, muitos atribuem esses deslizes à pouca idade, não atendendo

à necessidade de corrigenda premente.



Sem a reprimenda

justa, perdeu-se o ensejo educativo. O que discuto aqui, não é apenas o

ato em si, impertinente por natureza, mas também a percepção egoísta

implícita de que é divertido ver um indivíduo deixar o que estiver

fazendo, simplesmente para abrir a porta e ver seu vulto desapareceer.

Não importam os incômodos que cause, desde que ele esteja se divertindo.

- O senhor está exagerando! Isso é absurdo! Quem nunca brincou

disso, quando era pequeno? Eu mesma brinquei, na minha cidade natal.

Todo mundo faz isso! Todo mundo já fez isso! E nem todo mundo que faz

isso vai virar bandido. - Retorquiu a mulher, alterando-se,

levantando-se da cadeira que lhe fora oferecida.

Doroteu piscou, aparentemente nocauteado demais para reagir. Na

verdade, porém, lamentava por aquela criança e, afinal, não via com

muita tristeza a eminência de sair daquela vida, em um tempo que não

poderia demorar-se muito mais.

- E como saberemos? - Perguntou, os olhos intensos dardejando

da mulher para a filha, ao mesmo tempo em que o menino, astuciosamente,

tentava esgueirar-se do seu lugar para a porta entreaberta.

- Saber o quê, meu senhor? - INdagou dona Beatriz, praticamente

cuspindo a última palavra.

- Se a impunidade gerará ou não maiores conseqüências. A senhora disse "nem

todos...".

A mãe suspirou, imitando o filho ao se levantar. Colocou a bolsa em

uma mão e atraiu a mão do rebento para a outra, virando-se para a porta e

abrindo-a, fazendo menção de passar para o quintal minúsculo, mas bem

cuidado de Doroteu.

- Já entendi, seu Doroteu. Alex não vai mais apertar a campainha do

senhor e, se fizer, o senhor me avisa, que eu resolvo lá em casa com

ele.

Doroteu acenou, resignado à mente obtusa da outra, ao mesmo tempo em

que adiantava-se para abrir-lhe o portão, em um gesto de gentileza que

apenas a filha anotou.

Após eles passarem, ficou algum tempo parado diante do portão

aberto, justo o tempo suficiente para ouvir o comentário que rolou

ladeira abaixo:

- Velho mais louco! Pensa que eu tenho tempo pra perder? E você,

Alex, não me provoque ele nunca mais. Sabe lá o que ele é capaz de

fazer. Imagine só, implicar desse jeito com uma criança tão pequena...

O comentário jocoso e aparentemente relaxante que faria, morreu na

garganta de Morgana, quando o pai encostou o portão e voltou para a

sala.

Por um mecanismo inexplicável, mas definitivamente real, ele

pareceu-lhe mais velho, os ombros descaídos e o andar, pela primeira

vez, mais lento.

- Ah, pai... Por que o senhor tem essa mania de querer mudar o

mundo? - Indagou com um olhar terno e breve, ao mesmo tempo em que

se apoderava do controle remoto e ligava a televisão.