A turba humana ali apresentava-se mais densa que qualquer uma que ele pudera
ver até então. Os rostos
passavam em uma azáfama tão grande, que lhe resultava impossível
fixar-lhes os traços. O que ficava na retina, era uma
impressão geral de mal-estar, desmazelo, abandono e sufocamento.
Bramidos, exclamações desconexas, urros e gemidos dilacerantes compunham
uma cacofonia, no mínimo, perturbadora. A atmosfera geral era
irrespirável.
- O senhor está certo de que me disse que iria presenciar algo belo?
- Perguntou Mariano.
Era jovem, no corpo que deixara e nas suas experiências naquele
novo lugar. Os olhos negros e maliciosos, o rosto oval, queixo pontudo.
Estatura mediana, parecia estar sempre disposto a encontrar uma saída
bem humorada, ainda que irônica. Não obstante isso, estava empenhado nos novos aprendizados e
possuía uma fé ardente, embora não se soubesse precisamente em quê. Fora
biólogo, na Terra, e agora, desde há alguns anos, estava por aquelas
paragens. Deixado aos cuidados de Euclides, um dos instrutores do
lugar, fazia rápidos progressos, ainda que seu sentido permanente de humor
o fizesse, algumas vezes, ser precipitado e levemente superficial.
Ao questionamento do outro, o instrutor apenas adotou uma expressão
séria. Mariano silenciou. O que quer que fosse, precisava acabar logo.
Sem dúvida, o ambiente o estava afetando negativamente, e ele
pilheriava para buscar imunidade às suas emanações.
- Não faça isso. - Murmurou o outro, a mão suavemente pousada sobre
seu ombro, os olhos de repente olhando-o como se pudessem radiografar
tudo que estivesse na mente dele. - Às vezes, é preciso deixar-se impregnar.
Aos signos de surpresa na atitude do pupilo, atalhou:
- Não me refiro, naturalmente, a aceitar-lhes as disposições
íntimas, mas a procurar perceber o que eles sentem. Consegue fazer isto?
Fosse qual fosse sua resposta, ele não teve tempo de a proferir, porque, inopinadamente, todas as
atenções foram atraídas para alguém que acabava de chegar. Era um dos
homens mais altos que Mariano vira, neste e no outro mundo. Os olhos de
um perfurante azul, pareciam ser o único ponto minimamente razoável na
sua aparência,
dado a estranheza do restante do conjunto. Seus cabelos eram revoltos e
tingidos de um vermelho muitíssimo vivo. As roupas, aparentemente largas
e coloridas
demais, pareciam ter sido confeccionadas com o único
objetivo de atrair a atenção. Sua gravata descomunal estava toda pintada
com motivos do Rio Grande, do mesmo modo que todos os itens do seu
vestuário
pareciam fazer alusão àquela região. O indefectível lenço encarnado
quase envolvia-lhe os braços, partindo do pescoço no qual fora
habilmente colocado.
As botas, indo-lhe até aos joelhos, tornavam sua
aparência, ao mesmo tempo, mais palpável e mais irreal. Entretanto, ele não apenas usava
aqueles trajes; desejava fazer deles uma espécie de bandeira, de
chamariz, fosse pela forma como os ostentava, fosse pela confecção, em si.
De alguma maneira, o efeito parecia exagerado, pouco natural e,
sem margem para dúvida, irresistivelmente risível.,
O riso, entretanto, demorava a sair, tal era o inesperado da
situação. Mariano olhava, confuso, do recém-chegado para seu mentor,
inseguro sobre o que perguntar e, até, sobre o que pensar em seguida.
Foi então que percebeu que, dentre os recolhidos àquele lugar, ocorria um fenômeno ainda mais
inesperado que todo o resto: lentamente, as pessoas foram silenciando,
e algumas expressões tornaram-se mais suaves. Aquela mulher, que era
contida por uns no esforço de comer suas próprias carnes, e incentivada
a fazê-lo por outros, simplesmente quedou-se no chão, misteriosamente
pacificada; aquele homem, que corria em volta de si mesmo, supostamente
procurando por um parente há muitos anos perdido, parou,
apaziguado; o ancião que, aparentemente, fugia de
perseguidores invisíveis aos demais, convergiu para o meio dos outros,
tentando ver melhor o recém-chegado.
Mariano não conseguia parar de observar. Vivia um daqueles momentos
em que é impossível tirar conclusões, restando-nos apenas observar e
esperar.
Subindo em um banco de palha desnecessário, mas aparentemente ali
colocado para este fim, a figura alta do recém-chegado pareceu
destacar-se ainda mais.
- Bueno... É danado de bom que todos vocês estejam aqui, mas falta
trazer cá os amigos das outras coxilhas. Não se pode fazer nada sem a
locaiada completa.
Como se aquelas fossem palavras mágicas, correntezas humanas
convergiram de diversos pontos, entrechocando-se, fundindo-se e
confundindo-se com a platéia original. Os signos de insanidade mental,
entretanto, agora dividiam lugar com uma alegria infantil e,
indiscutivelmente, genuína.
Do alto da sua tribuna improvisada, ele fazia gestos a todos e a
cada um, em particular. Parecia conhecê-los um a um, e distribuía comentários
dirigidos a algumas pessoas, chamando-os pelo nome.
Em seguida, entretanto,
levantou os braços, e todos silenciaram. Pareciam esperar um
acontecimento solene.
- Vale... Vamos, então, realizar a semi-final do nosso campeonato de
cuspe a distância, pelo que seria interessante que todos abrissem
espaço... Abrindo, abrindo, abrindo... Bah, que gurizada mais lenta!
Vamos, vamos, que além deste campeonato, temos mais três... Então...
Eu quero aqui, no meio, só os nossos amigos que vão provar seu valor.
Alberto, Marcelo, Pedro Henrique e Aldegundes.... Que coisa mais triste,
meus amigos, apenas uma mulher mostrou-se emérita cuspidora..
Com isso, bem se pode dizer que não têm praticado nada.
Os quatro aproximaram-se. Era bem possível que aquela fosse a
primeira vez em que articulavam um pensamento coerente, em todo o dia.
Em seguida, para espanto absoluto de Mariano, o homenzarrão sobre o
banco pôs-se a narrar e orientar aquele que, aparentemente, era o
principal divertimento do grupo. Dez minutos e oito cusparadas mais
tarde, ele deu-se por satisfeito. De repente, parecia que todos
estavam ali apenas para se divertir, que nada de errado havia com eles.
Ao concluir o primeiro campeonato, realizaram a primeira fase do
"campeonato dos imitadores", que foi conduzido com indescritível bom
humor. Se as imitações não eram sempre convincentes, as coisas que se
propunham imitar possuíam, sem dúvida, um humor irresistível, de modo que
Mariano não se surpreendeu ao ver que o próprio instrutor se entregava
ao riso geral.
Quando as brincadeiras terminaram, porém, fez-se sério, de uma forma
que quase assustou aos que não o conheciam.
- A nossa rádio ao vivo deste maravilhoso hospício vem, por meio
deste momento, anunciar o retorno à carne de alguns amigos... Que as
bênçãos do nosso índio velho mais querido possam recair sobre eles,
dando-lhes coragem na vida braba que os espera lá embaixo...
E leu os nomes, em um tom fúnebre. Em seguida, anunciou:
- Mas como tudo não é igual pra todo mundo, queria anunciar a
chegada para breve de alguns amigos, finalistas do grande concurso da
vida que precisarão dar uma passadinha no nosso mui querido locômetro.
Leu os nomes com um ar introspectivo e, com duas ou três tiradas de
humor inesperadas, desceu da tribuna.
Num átimo, foi totalmente cercado, a figura alta e espadaúda
sobressaindo de um mar de rostos.
- Quem você pensa que ele é? - Indagou Euclides, fitando seu
interlocutor de tal forma, que parecia que conseguiria uma resposta,
mesmo que, porventura, ele se negasse a falar.
- Um louco, sem dúvida. - Proferiu o outro.
- Por quê? - inquiriu.
Mariano pensou. De repente, havia tantos motivos, que lhe era
difícil saber por onde começar.
- Bem, ninguém usa uma gravata que vai até aos joelhos. A mescla de
locutor de rádio com narrador de rodeios e apresentador esportivo,
parece não deixar dúvidas. Entrar em um antro de dor como este e agir
como se estivesse diante de uma platéia de circo, é quase ofensivo e,
para completar, ninguém, em sã consciência, narra um campeonato de
cuspes, um de imitações canhestras, outro de corrida no saco em uma
noite só.
- O amigo então preferia que eu fizesse cada qual em um dia
diferente? Eu já tentei, mas fica difícil reunir a locaiada... O efeito
não é o mesmo... Mas não me olhe com esse jeito de piá pego fazendo o
que não devia, eu que me intrometi na prosa de vocês dois, porque dei uma escapadela para apertar os ossos desse
índio querido de longa data...Mas que que isso, Euclides! Esse teu pupilo ta
mais escarlate que china beijada pela primeira vez... Não faça
caso de nada disso, amigo...
E, em seguida, passou a conversar com o outro.
- Grande Euclides... Que tal as coisas no Educandário? Muita
gurizada empenhada por lá? Esse povo chega cada vez mais espavorido da
terra... Antigamente, nos tempos em que eu era guri lá em Passo Fundo, a
espiritada fazia desligamento... Agora, parece que têm que fazer quase
que uma amputação... Como o povo tá difícil de sair! Não querem se
desgrudar das roupas velhas de jeito nenhum... Se bem que, claro, sempre
existem casos que desmentem.
- O que vai acontecer com eles agora? - Ousou interromper Mariano,
fixando o olhar na turba que ainda continuava de pé, há pouca distância
dos três.
- Ah, eles? Filho... Alguns vão guardar como preciosidades as
vibrações e as lembranças dos momentos que passamos aqui. Outros,
receio, vão voltar aos quadros mentais em que estávamos quando nós
começamos o "show". Bem, mas cada qual tem seu tempo, e o tempo de cada
um chega,
de um modo ou de outro, do mesmo jeito que sempre chega pro relógio a
hora que a gente espera.
- Mas isso é como um ópio... - Disse Mariano, arrependendo-se, em
seguida.
- Ah... Tu sabe que pode ser isso mesmo? Gostei, guri. A alegria é
um ópio ou um bálsamo, depende de como tu vive. Agora, chego pra longe,
que o tempo é pouco.
Foi
um prazer prosear com vocês, mas ainda tenho três campeonatos pra
elaborar daqui até o finalzito da noite.
E, apertando a mão aos dois, pareceu esfumar-se no ar, como que
tragado pela multidão e pelo interior da Terra.
Quando não puderam mais vê-lo, Euclides convidou Mariano
para sair daquele lugar em que, visivelmente, a atmosfera caótica
retornava, lentamente.
Já longe dali, acomodados em um dos muitos bancos de uma das várias
praças daquela zona, Euclides arriscou:
- E então, o que pensa dele?
- Eu não sei. Acha que ficou chateado com o que eu disse?
- De modo algum. Pareceu?
- Não, mas...
- O constrangimento foi seu, não dele. Ainda acha que ele é um
louco?
- Eu não sei.
- Mauro, é esse seu nome. Um grande trabalhador... Esteve no Educandário
faz, o quê? Uns quatrocentos anos , creio...
- Mas...
- É trabalhador do hospício de onde saímos.
- Mas... Pensei que fosse interno...
Ao som dessas palavras, Euclides ofertou-lhe um sorriso que
transmitia, ao mesmo tempo, condescendência e afeto, no qual todo o
rosto tomou parte.
- Nem todos podem fruir as primeiras letras da espiritualização da
mesma forma. Há uns que estão tão encharcados pelas impressões da vida a
que se dedicaram, que não comportariam, por exemplo, uma interação como
a que desfrutamos, agora.
- Mas...
- Cada qual recebe o alimento de que precisa. Os mesmos nutrientes,
as mesmas vitaminas, podem ser administrados de diversas formas, desde
sopas quase líquidas, até manjares mais elaborados. Mauro dá-lhes o
alimento espiritual que podem obter, no momento.
- Mas com toda aquela irreverência...
- A alegria também constrói, Mariano. Há que se ter bom senso, como
em tudo, mas também lá podemos encontrar elementos sublimes, que curam,
libertam, refazem e sublimam. - Fez uma
pausa, repleta de significado, ao fim da qual continuou: É preciso que se
tenha muita humildade para submeter-se ao julgamento dos que não estão
familiarizados com as necessidades desses irmãos e para conduzir
corações ligados, muitas vezes, à loucura pelo mal, até a ingenuidade de
uma brincadeira inócua. Para muitos deles, Mariano, sentir prazer com algo assim
é coisa francamente inédita.
- Ele não é louco, então?
- Não. Por muitos anos, dedicou-se a trabalhos árduos e a estudos intensos, para ter condições
de laborar junto ao seu filho, imerso por séculos a fio nas trevas mais
densas. Cem anos foram necessários, até que sentiu-se preparado e teve a
permissão para o ajudar pessoalmente. Tentou tocá-lo de todas as formas
possíveis, desde os intercâmbios mais repletos de lógica e senso, até
mesmo tentando acordar nele as mais ternas lembranças, mas não obteve
êxito em qualquer dessas tentativas. A ternura e a razão sossobraram,
ao final, confrangidas por uma dureza d'alma que não permitia idéias
sutilizadas sob nenhum conceito. Seu coração era como uma caverna
escura, onde não entrava sequer uma réstia de Sol. Sentia-se frustrado
por ter esperado tanto por aquele momento para, depois, não obter
qualquer êxito.
- E então?
- E então, um dia, teve essa brilhante idéia. Vestiu-se com os
símbolos de sua última encarnação e com uma boa dose de espalhafato e desceu aos abismos trevosos para
fazer humor às portas das furnas. Foi ridicularizado, humilhado,
brindado com todos os apodos desonrosos de que se puderam lembrar, mas
conseguiu fazê-los rir. E tal era seu talento, e tal era sua
determinação, que, dentro de pouco tempo, muitos dos que ali estavam
paravam para o escutar. Participaram dos seus campeonatos inocentes,
porque, por pior que seja o homem, guarda, em algum lugar, dentro de si,
algo da criança que foi um dia... E, entre uma brincadeira e outra,
enxertava conceitos superiores, armado de uma linguagem coloquial, em
que realismo e humor se misturavam de forma exemplar. Foi assim que
resgatou muitos deles e trouxe-os para as câmaras de alienados daquele
setor...
- E o seu filho, veio também?
Euclides respirou fundo, antes de responder, os olhos fitando na
direção de onde voltaram, fazia já uns bons minutos.
- Ah, sim. O seu filho sou eu.
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