Sua escolha

França. Século XIX. Todo o tempo, Paulina creu que Clara fosse sua
bem-feitora, embora houvesse uma exitação intangível nas suas
convicções.
Porém, quando o pano desceu e a verdade veio à tona, uma desconfiança virou
certeza e a certeza
virou ódio. Os insultos conhecidos não eram suficientes. Insuficientes seriam
aqueles que pudessem ser inventados. Decepção. Amargura. Revolta.
Clara foi a primeira a ser acolhida, cansada de sofrer e vagar.
Depois de algum tempo, revistos os paradigmas, percebeu todo mal que
tinha feito. Marcaram encontro com Paulina. Enfrentaram a verdade cara a
cara. Veio o entendimento. Perdoa? Perdoo. E como todo mal para
desaparecer tem que ceder lugar ao bem, marcaram novo encontro. Itália,
séculos mais tarde. Uma negociação difícil. Paulina não queria:
desconfiava. Clara garantia, afiançava, jurava de joelhos. Fazia as
promessas desfilarem em procição. Elencava boas intenções. Pedia,
implorava. Mãe e filha, um dia.
Clara voltou. Reduzida à expressão mínima, de pingo virou botão, de
botão fez-se rosa menina, florescendo pela haste umbilical. Na infância,
encontravam-se, nos momentos em que a pequena dormia. Clara e Paulina, promessas avivadas. Minha filhinha... E
chamava Paulina às bonecas que possuía.
Clara mostrou-se claramente inteligente, mesmo brilhante. Sua
capacidade floresceu junto com o corpo bem proporcionado. Esperta,
sonhos aos montes. Baús fechados e abertos deles, uma profusão.
A idéia da filhinha perdeu-se nas ambissões acadêmicas. Um
bacharelado, um mestrado, um doutorado, cursos no exterior, e então,
depois, só depois, viria a filha, se não lhe ocorresse nenhum outro
objetivo.
Mas o amor falou mais alto. Sandro primeiro foi sonho, depois foi
possibilidade; finalmente fez-se conquista, realidade palpável,
pontuando seus anelos com uma vírgula inesperada.
Ora, ele queria as mesmas coisas que ela. Também tinha uma
inteligência notável, não a jungiria a um casamento tradicional, sem
horizontes profissionais. Clara teria sua carreira, seus diplomas, seu
conhecimento encrementado exponencialmente... E teria um marido que
também olhava na mesma direção... Alguém para partilhar a garrafa de
café preto, nas noites de estudos e insônia.
Por que não? Sim. E o sim foi repetido, primeiro no jardim da casa
de Sandro, depois, no autar. Noiva linda, de branco, resplandecente.
Paulina a tudo assistiu. Chorou, encantada, fazendo os mais ternos
prognósticos. ,
As bodas enterneceram Clara. Uma família, por que não? Encontrou um
gosto para a vida doméstica que ela desconhecia. Fora das amarras
físicas, reencontrou Paulina. As promessas agora eram cataratas. Um
quarto cor-de-rosa, o escritório convertido em ninho de esperas para
depois desabrochar em tabernáculo de amor e ternos cuidados. A
princesa, a bonequinha. A equipe que acompanhara o caso desde o
princípio, exultava.
O tempo passou. O estágio era exigente, as obrigações apenas
cresciam. Sandro estudava tanto, que passava dias inteiros sem aparecer em
casa. Quando retornava, discutiam ferozmente. Não era possível que
alguém passasse uma semana apenas estudando na casa de amigos. As
discussões obrigatoriamente terminavam entre os lençóis.
Susto, surpresa, rejeição. Absolutamente, foi o que decidiram. O
casamento não vai bem; os estudos, por sua vez, não poderiam estar
melhores. Um bebê, sim, claro, teriam uma família... Se superassem a
crise, se fosse o desejo dos dois, se as carreiras de ambos oferecessem
espaço. Antes, não. Assim, sem aviso, de modo algum.
Mais uma vez, encontraram-se durante o sono. Argumentos, lembranças
das promessas empenhadas... Nada adiantou.
Enquanto isso, Paulina, reduzida à mínima expressão, sentia o
perigo, confundia-se toda, antigos receios, apagados com muito custo com
acehnos de entendimento, retornando com força total.
Quaisquer argumentos eram inferiores à vontade férrea do casal.
Arcariam com o compromisso, mas, não agora. Paulina que tentasse mais
tarde. Eles que tentassem mais tarde. Estavam na carne, deviam atender
seus imperativos. A vida não era fácil. Não se sentiam em condições.
Ganhavam bem? Ora, isso sempre pode ser relativizado. Não ainda, não
agora, sentiam muito, mas não haveria capitulação.
Noite. Para ela, a escuridão seria para sempre vermelha. Soube de
tudo antes. Quase sentiu antes que chegasse. Imaginou e plasmou o
momento
milhares de vezes, até que veio o real, e não era, de modo algum, como
supusera: era muito pior.
Depois de tudo, silêncio. Escuro, muito escuro. Em seguida, luzes
azuis e brancas. Atmosfera suave. Mãos carinhosas, uma coberta puxada
sob seu queixo.
Os olhos abertos, olhou suas mãos... Minúsculas, numa paródia do que
teriam sido... A cabeça pequenina, mas, ainda assim, desproporcional. O
tronco era o de uma mulher; as pernas e os pés, de um feto.
O grito de horror jamais saiu de sua boca. Vingança! Exigia, os
olhos fechados, a alma inteira mergulhada em um paroxismo de angústia
indizível. Deus
teria de tomar providências. Ele não deveria permitir.
O quarto dos
seus sonhos agora lhe parecia tingido de vermelho. Vermelho, vermelho,
como vermelha para ela seria a escuridão por muito e muito tempo.
Meses se passaram. Não sabia bem quando era noite ou dia. As horas
se derramavam embebidas numa infusão de ódio atordoante. Matá-la. Arrastá-la pelos
cabelos com força, com tanta força, que haveria de separar-lhe a cabeça
do corpo no processo. Depois, ah, sim, sem dúvida, arrastar essa cabeça
até a ignomínia completa, os abismos tortuosos, as palavras que
ensandeciam, o caos absoluto. Gritos, vozes, apodos aviltantes,
chafurdando na lama da raiva sem freio nem medida nem direção. Não
haveria mais carreira brilhante alguma. Uma vida de tormentos,
frustrações e culpas. Ela sabia aonde seu quase pai estudava, nos
últimos tempos. Far-lhe-ia saber da pior forma possível.
Superpotencializaria a informação até o infinito. Derramaria a miséria
na sua vida como vidro moído mergulhado em ácido com alto poder de
corrosão. Oh, sim... Uma eternidade inteira para planejar e executar,
torturar e aviltar... E o quarto cor-de-rosa tingido de vermelho.
- Paulina, Paulina, por favor...
A princípio, a voz era suave e branda; depois, fez-se exigente,
imperiosa, ainda que não subisse o tom.
Os olhos se lhe abriram. A agonia elevada à potência limite, contemplou o lugar em
que estava. Por um breve instante, pensou que se descobriria no mundo
quente e morno do qual fora outrora senhora, e que tudo aquilo foram
temores infundados da sua alma ainda incerta sobre as blandícies do
amor. Mas estava lá. O ambiente ascético, a mulher de túnica alvíssima
segurando sua mão com a delicadeza de um anjo e a determinação de um
titã.
- Paulina... - Sussurrou a outra, na penumbra. - Por favor, não
faça mais isso.
Buscou em si ódio suficiente para a atordoar no próprio instante que
a mirasse, mas a ternura infundida pelo toque dela não o permitiu. Os
olhos de ambas se encontraram. Em um átimo, a outra esquadrinhou a
mente da enferma. No silêncio, ela percebia o que estava acontecendo,
mas sentia que tudo era feito com tanto amor, que não poderia
rechassar, mesmo que quisesse. Só naquele momento, percebeu quanto
precisava de afeto, embora julgasse que apenas necessitava manter o ódio que a
unia àquela que comprometera-se em recebê-la. Mas a compreensão da
outra banhou suas fibras ressequidas
pelos sentimentos em desalinho qual néctar de propriedades curativas.
Em uma miríade de impressões suaves, passadas de uma mente para a
outra, a enfermeira deu-lhe seu nome, como quem oferta uma recordação
de uma noite sagrada, etérea e remota: Larizza. idéias fluíram
entre ambas,
sem que precisassem falar. Da raiva instintiva, Paulina passou a um
respeito legítimo.
Ainda assim, não pôde soptar a pergunta que lhe veio à mente.
- Onde está Clara? - Perguntou, estranhando o som da própria voz.
- Clara? - Indagou, como quem estivesse provisoriamente incerta
sobre o rumo que a conversa estava tomando - está bem, acho.
- Bem? Ela está bem? - Estivera suspensa em uma outra realidade,
pensou. Entretanto, a idéia de que a outra estivesse simplesmente "bem",
fê-la voltar à postura anterior. - VocÊ tem idéia do que está me dizendo? Depois
de tudo o que fez, ela está bem? Tem
idéia da ignomínia que ela me fez? Clara prometeu! E não foi a primeira
vez que falhou.
- Sim, eu sei.
- Sabe? De verdade? E então, o que me diz disso?
- Paulina, por favor, descance. Agora não é o momento de conversar
sobre isso.
- Ah, não? Não é o momento? E quando será o momento? Quando ela
fizer com outra pessoa, e outra, e outra e mais outra? - Perguntou,
tentando soerguer o corpo do leito, sem obter sucesso.
Olhando-se, percebeu que todo o seu corpo, agora, parecia ao de um
bebê.
- Paulina... Escute, tudo ainda pode ser refeito. Foi terrível, é
verdade, todos nós reconhecemos, mas eles ainda são jovens, podem
amadurecer e, depois, se você quiser, poderá voltar outra vez.
- Voltar? - Inquiriu, o rostinho miúdo voltado na direção da
interlocutora, banhado por expressão atormentadíssima. - Você supõe que
eu deseje voltar?
- Escute, Paulina, nada está decidido, não precisamos pensar nisso
agora. Temos um longo caminho, até sua recuperação completa.
- E enquanto eu estou aqui, ela está aonde? Ela está aonde?
Em silêncio, a enfermeira estendeu-lhe as mãos, de onde emanaram uma
luminescência azul e suavíssima. Dentro de poucos instantes, Paulina
adormecia, o corpinho serenado, acomodado no lençól alvo.
Seu sono foi agitado; os sonhos, entremeados de vingança. O ódio
que sentia adquiria proporções destrutivas. E o quarto rosa tornando-se
escarlate.
Mais uma vez acordou e olhou para baixo. Graças ao trabalho dos
médicos, sua aparência voltava a ser como antes, os olhos
percucientes e claros, os cabelos finos, loiros e ralos, a boca que podia ser,
dependendo das circunstâncias, mesquinha ou afetuosa.
Daquela vez, também ela estava lá, sentada, uma presença serena e
firme, contra a tarde calma que se escoava lá fora.
- Onde ela está? - Perguntou, uma vez mais, com a certeza de que a
outra sabia muito bem a quem se referia.
- Eu não sei, Paulina.
- Sua notícia mais recente? - Inquiriu, agora sem desejar
destroçá-la com a simples fúria dos seus olhos. Entretanto, de algum
modo, a fúria recolhida pesava mais que a explosão da
entrevista anterior.
- Não sei exatamente. Acho que estava recolhendo material em Paris.
- Paris? Irônico. Por que ela não aproveitou e não fez uma pesquisa
breve sobre sua última vivência, em Paris? Talvez isso lhe pudesse ter
ensinado alguma coisa sobre promessas.
Um suspiro quase imperceptível, os olhos nos dela.
- Paulina, faz já dois anos. Você não poderia...
- Não. Não faz dois anos, faz dois minutos! Eu sei que sabe, melhor
que eu, que o tempo é relativo. Faz dois minutos, dois segundos, sem
dúvida, menos de dois dias, e ainda tem coragem de defendê-la?
- Então não percebeu ainda que eu estou defendendo você? - Indagou.
Seu tom era firme, porém brando, as mãos fechadas sobre o pulso da enferma
com urgência e doçura.
Uma vaga de confusão atravessou os olhos de Paulina, e a outra
tratou de esclarecer:
- Você está se aprisionando a isso. Está permitindo que isso te faça
ainda mais mal. Está retardando seu próprio restabelecimento, perdendo
tempo valioso.
- Eu não me importo. - Proferiu, a voz um pouco acima que o
recomendável.
- Não? Com o que você se importa?
Paulina permitiu que as emoções viessem à tona. Tocou-as brevemente
com os dedos, antes de deixá-las vir à luz. E, embora as palavras
seguintes parecessem pedras atiradas ao rosto da outra, ambas sabiam que
eram à ausente que elas se destinavam.
- Com ela. Quero que ela viva todo o horror que me fez viver. Quero
que ela sofra, que blasfeme, que se afunde na própria miséria! Que
perceba o que realmente existe, por trás daquela maldita máscara de
civilidade. Quero que ela se odeie. Que morra de vergonha de mim. Quero
vê-la patinar nas próprias imundícies e, talvez ali, rogar-me
misericórdia, para que eu feche em seu rosto a mesma porta que ela me
fechou.
- Ah... É isso que você quer? - Perquiriu Larizza, os olhos
cintilando com uma luz nova, a expressão determinada, as mãos
desprendendo-se do pulso da outra, os cabelos agitando-se levemente, com
a sua alteração.
Paulina registrou tudo isso e olhou-a, um tanto confusa.
- Apenas responda-me se é isso que você quer.
Agora, ela hesitou, começando a perceber que o diálogo que
travavam passara a ser bem
mais que retórica.
Diante da surpresa crescente da enferma, Larizza ergueu-se da
posição em que estava. Com movimentos experientes, retirou todas as
mantas que aconchegavam o corpo quase refeito de sua protegida.Puxando-a
por uma das mãos, fê-la levantar-se, sentar-se no leito, convidando-a a
descer dele, e se houve gentileza enquanto ajeitava-lhe a escada sob os
pés, havia um ar implacável quando, sem dizer palavra, não lhe dava
tempo de pensar no que estava acontecendo.

Paulina sentiu a frialdade do chão. Saiu da sala aconchegada, e
recebeu, no rosto, a luminosidade do Sol poente. A enfermeira segurava-a
pela mão, decidida e enérgica, puxando-a, sem agressividade, mas de forma
irresistível para fora, sempre para fora.
Então os seus pés sentiram a terra macia dos jardins, o nariz
registrando a suavidade das flores, os olhos deliciados com a festa
das cores e das aves voejando no firmamento. Os cabelos finíssimos e
ralos moviam-se com o balanço da brisa morna, ao mesmo tempo em que
continuava a andar. Viu grupos de pessoas atarefadas que passeavam-se
nas mais diferentes direções, um ou outro monumento ornamentando uma das
muitas praças por onde passavam. Nos edifícios oficiais, a bandeira
tremulava gentilmente, ao mesmo tempo em que música indizível
sobrepairava na atmosfera, emprestando a tudo um ar em que sentido de
responsabilidade e prazer mesclavam-se, mais que o que se imaginaria.
Costurando pelas ruas pavimentadas, pelas praças e pelas fontes de
água puríssima, sua guia continuava a incitá-la a andar, puxando-lhe
pela mão, sem qualquer trégua, sem dizer-lhe palavra, quase sem olhar
para ela, enquanto a fazia passar das ruas residenciais para os campos,
dos campos para os bosques entremeados de nascentes encantadoras, das
nascentes para um descampado inesperado, do descampado para um declive
que ia descendo, descendo. Com ela desceu por mais de dez minutos, o som
da música dulcificante deixado para trás, a visão do Sol poente
substituída pela escuridão quase imperscrutável de um céu sem estrelas e
que ostentava uma Lua preguiçosa e carcomida.
De súbito, poucos passos a frente de seus pés, o declive
transformava-se em uma escada. Os degraus mal ajambrados continuavam a
conduzir para baixo, sempre para baixo. Ali, de pé, Paulina teve
permissão de parar. Sentia os pés doridos pelos diferentes tipos de solo
a que estiveram expostos. Os olhos, com alguma dificuldade, buscavam
hadaptar-se à pouca luz, mesmo que não houvesse muito mais além de
trevas para ser visto. Os cabelos tremeluziam ao influxo de um vento
gélido, enquanto suas narinas incomodavam-se com um cheiro pesado, metálico e
indefinível.
- Você sabe que lugar é esse? - Quis saber a enfermeira, sem
soltar-lhe a mão.
Pauina não podia evitar tremer de frio, embora preferisse não fazê-lo, como se isso
denunciasse uma espécie de fraqueza, diante da outra.
- Estamos na divisa, o mais próximo possível da divisa. Para trás,
temos os aglomerados de colônias.
Você sabia de tudo isso, anos atrás, antes de
ingressar na matéria, mas pode ter esquecido.
Silêncio. O vento assoviava de forma incômoda, enquanto, mais abaixo,
pontinhos de luz, parecidos com vaga-lumes àquela distância, faziam-se
ver esporadicamente.
- Nós temos o mais próximo do céu que muitos esperam na carne.
Gozamos, sem dúvida, do melhor que se poderia esperar, de acordo com
nosso merecimento. Temos estímulos, oportunidades, amor e compreensão,
uma combinação perfeita para que possamos evoluir, ampliar nosso máximo.
Se nos dedicarmos, poderemos ter acesso a conhecimentos inimagináveis,
alegrias sutilíssimas, afetos imperecíveis e, claro, às melhores
possibilidades de crescimento na carne.
"Com o tempo, aprendemos a atravessar as imensidades com a simples
força do pensamento e, então, sentimos pelos nossos antigos algozes uma
legítima piedade, porquanto os compreendamos, efetivamente. Por trás de
todo mal feito existe uma grande dor, Paulina, e isso, em lugar de
justificar-lhes os atos, tornam-nos ainda mais tristes, posto que, para
além do mal que inflingem aos outros, recrudesce o mal que fizeram a si
mesmos.
"VocÊ está livre, Paulina, livre para fazer o que quiser, talvez,
mais livre que o que jamais possa ser, imersa na carne. Pode descer
essas escadas e inscrever-se na Sociedade dos Vingadores, e ter uma
organização com poderes insuspeitos a sua disposição, mas também pode
deixar sua humilhação para trás, despojar-se do seu ódio, ou, ao menos,
do desejo de vingança, e continuar conosco, galgando, assim, patamares
de crescimento nos mais diversos graus, disponíveis na medida do seu
esforço e espírito de sacrifício.
- Você está me pressionando? - Quis saber Paulina, agora tremendo
visivelmente, enquanto sua interlocutora a enlaçava, em um gesto tão
afetuoso, quanto suave.
- Não. - E, apesar da delicadeza, foi inflexível a voz que a
respondeu. - Estou lhe mostrando as dimensões corretas da sua escolha.
Se você quer se vingar, não ficará conosco. Descerá essas escadas, por
conta própria, e ficará aí. Fará o que te parecer justo e,
eventualmente, conseguirá alguma vantagem aparente sobre sua atual
algoz, tomando-lhe o lugar de verdulgo, concedendo-lhe o seu, de aparente
vítima.
- Excelente.
- Excelente? Ah, sim, devo ser honesta e dizer que você tem boas
chances de arrastá-la pelos cabelos, até que sua cabeça se desprenda do
resto do corpo, mas devo recordá-la de que o sangue que respingará,
também enodoará suas mãos e suas vestes. Devo acinalar que, ao fazer-lhe
tudo isso, você estará em posição de receber dela uma vingança
igualmente sangrenta, igualmente aviltante, e igualmente memorável e,
após isso, é bem provável que deseje inflingir-lhe nova série de
infortúnios. E você sabe quanto tempo isso pode durar? Dez anos? Cem?
Sei de casos que duraram milênios! E tudo porquê? Porque você acha que
é bastante inteligente e sensata em abrir mão de todas as necessidades
da sua alma, para ir à desforra, como se isso pudesse apagar o
passado, como se isso pudesse fazê-la mais feliz, como se isso pudesse
fazer com que o quarto que sonhou fosse rosa, deixe de te aparecer
totalmente vermelho de sangue, nos seus sonhos.
- Ah, você viu isso? - Quis saber Paulina, entre surpresa e
aviltada.
- Era minha função ver. Mas, por favor, não pense que estou dizendo
isso para constrangê-la. Eu só estou tentando dizer que não é assim que
você vai concertar o que quebrou, não é assim que você vai encontrar a
felicidade, não é assim que tudo isso vai terminar bem.
- E se eu descer essa escada, não poderei voltar? Você me negariam a
assistência justa?
- Ah, não... Nunca. - E, agora, ela atraía Paulina com mais
intensidade, face fria encontrando face fria, os olhos fundidos em um
só, uma vaga de impressões díspares chocando-se nas retinas, suas
palavras adquirindo a contundência de um juramento. - Nossas portas
jamais estão fechadas a qualquer um que deseje ser feliz deveras, você
sabe. O problema é que, caso opte por isso - E abrangeu com o olhar e um
gesto de mão toda a imensidade escura logo abaixo delas - ao retornar
para nós, estará ainda mais alquebrada, mais triste, mais desiludida,
mais marcada... E terá perdido ainda mais tempo. Será mais difícil, mais
doloroso o caminho de volta, e você não precisa passar por isso,
Paulina, não precisa! Sua alma está pronta para anseios mais delicados,
sua mente, no ponto de absorver conhecimentos mais profundos. Só
precisa...
- Esquecer de tudo que ela me fez?
Ao som dessas palavras, a expressão da outra cintilou por ium
instante, com uma energia ampla e desconhecida. Os braços que a
protegiam do frio ficaram tensos por um segundo. Seus olhos pareciam
capazes de incendiar gravetos com a mera intensidade das suas pupilas.
'Mas, assim como veio, passou. O intenso e firme agora soava desolado e
lasso; a veemência deu lugar a uma delicadeza moribunda, ao tempo em que
o vento as assoitava ainda com mais determinação.
- Paulina, ouve, e será a última coisa que vou dizer sobre tudo
isso: ao trancar-se naquele banheiro sombrio com os apetrechos que
julgava redentores, Clara fez sua escolha. Agora, é o momento da sua.
Essa é a sua escolha, seu momento, sua decisão. São instantes separados,
ainda que interpenetrando-se. Mas a escolha dela só vai influenciar a
sua se você quiser. Ao fazer o que fez, Clara conseguiu muito mais que
te decepcionar.
- É. Se eu descer essa escada, a culpa será dela. Transformou uma
filha que seria maleável e dedicada, em algoz pertinaz.
- Não. - E, agora, decididamente, havia mais intensidade nas suas
palavras. Um ar intistindo de autoridade e força emanava dela, e havia
um tal calor, que quase poderia aquecer o ambiente hostil em que
estavam. - Até onde eu sei, quando Clara fez aquele aborto, não te
retirou a capacidade de pensar por si mesma.
O Silêncio deslizou de uma para outra, como se fosse uma entidade
corpórea. Passou pelas duas, sentando-se nos ombros de Paulina.
- Vamos voltar? - Sugeriu Larizza, tocando-lhe no braço.
A outra não se mexeu.
- Paulina? - Chamou, e seu nome era uma pergunta e um sorriso soltos
no ar e esfarelando-se contra as pedras lá embaixo.
Lentamente, a interpelada voltou-se para a direção de onde vieram.
Juntas, começaram a galgar o declive. Uma pausa. Imobilizada sem
prenúncio, as duas contemplam-se novamente. Uma compreensão instantânea
esgueira-se de uma para outra. Silêncio. A única imagem não-verbal que a
outra registra, é um quarto cor-de-rosa fazendo-se vermelho. Primeiro,
as paredes; depois, o dedo; estranhamente, só nesse momento entram as
janelas. O piso. Vermelho sangue, vivo, intenso.
O instante multiplicou-se até o infinito. Olhos nos olhos, o único
contato físico sendo o das mãos entrelaçadas no escuro e no silêncio.
Cheiro metálico. Vento intenso, fustigando.
- É Isso realmente o que você quer? - Perguntou, e, como sempre,
aquela forma de falar como se estivessem apenas continuando uma
conversa, não soava anacrônica.
- É a minha escolha. - Confirmou a outra, não sem dor.
Lentamente, a mão livre da outra afagou-he os cabelos, poucos e
finos, macios ao toque, soando, concomitantemente, frágeis e impossíveis.
- Por que fazer o caminho mais longo, meu bem? - Quis saber, a
delicadeza fazendo anéis em torno de ambas, uma lágrima nascendo na
mente, sem, contudo, ainda atingir os olhos.
- Eu preciso. Entendo o que você falou, mas eu preciso.
Agora os segundos eram como borboletas velozes e imprevisíveis.
Todas as palavras eram supérfluas. Um instante, um abraço, o contato
visual servindo de ponte para o contato entre almas. Um último afago,
uma última frase morrendo antes de nascer. Percepções, as mentes
dialogando em uma compreensão recíproca.
- Você sabe que talvez um dia ainda possa ter aquele quarto
cor-de-rosa. Podemos trabalhar com ela, mas em frente distinta.
Prepará-la para recebê-la, para repor o que...
- Eu não quero. - E todo seu corpo ecoava a mesma opinião.
- Sabe que, ainda aí, haveria outras alternativas...
- Eu sei. É a minha escolha. Eu estou presa a isso. Eu quero
continuar presa a isso. Eu preciso continuar presa a isso. Ela tem
que
pagar, e eu quero cobrar.
Após alguns momentos, Larizza deu-lhe as costas e recomeçou a
subida. De quando em quando, olhava para trás. Ao aproximar-se do
descampado, percebeu que, lentamente, atrás de si, Paulina seguia.

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