Plantação de mortos

Plantação de mortos

Era uma vez um homemcujas idéias esfervilhantes não podiam ser
contidas no quartinho pequeno em que passou sua infância e adolescência.
Por lembrança singular, guardava o timbre terno, o
toque suave e firme em seus dedos minúsculos e o cantochão que o
incitava a dar seus primeiros passos: dandá... Dandá...
Era uma vez um homem cuja mente brilhante era demais para a cidade
litorâea em que cresceu. Como outra de suas lembranças mais recorrentes,
guardava o coro dos alunos na escola, as mãos sujas de terra, as aulas
intermináveis e repletas de conceitos que ele compreendia mal eram
enunciados.
Era uma vez um homem cujas perspectivas de um mundo novo não
combinavam com o ideal da sua cidade, tampouco do seu país. Foi por isso que,
um dia, ele se foi, todos seus pertences amontoados na maior mala da
casa, cuidando para não olhar para trás, sequer uma vez.
Era uma vez um homem que tinha uma mente e idéias tão soberbas, que
levaram-no a travar conhecimento com os mais próximos de um dos homens
mais conhecidos do seu século. Sua competência e ambissões
encontraram eco naquela nação sacudida por ventos estranhos, e ele lá
prosperou.
Do real para a fantasia, sua habilidade no xadrez transferiu-se para
os planos de conquista que engendrava, e mais que uma viória teve a nascente
no seu cérebro privilegiado.
Um dia,porém, o homem de que fala nossa história foi visitar um dos
campos nos quais suas sementes caíam há já um ano. Conduzido por outros,
sob um Sol primoroso, abeirou-se de área afastada, reservada de
inconvenientes.
- Aqui jazem mais de cinco mil! - segredou-lhe um de seus
subordinados.
De fato, sob a luz cegante, o homem contemplou os campos perfeitos
e inocentes. A terra fora remexida aqui e ali, sem, todavia, delatar o
segredo que seu seio abrigava. Entretanto, ainda assim, o homem creu ver
plantações de cadáveres que se lhe afiguravam à vista. Ali, raízes de
pernas raquíticas identificavam um velho; acolá, hastes tenras
denunciavam os membros de uma menininha; mais além uma família, logo
eram ruas inteiras, trasladadas à terra maldita, semeando de miragens
expectrais a paisagem outrora bucólica.
- São como uma plantação de mortos! - sussurrou, quase em transe.
- Ah, sem dúvida. - COncedeu seu subordinado. - Há que deitar fora as
más sementes, para que um novo mundo possa florescer.
Os cabelos louros daquela visagem feminina agitavam-se como flâmula ao vento,
parecendo a parte mais condensada da figura que timidamente erguia-se de
um rincão de terra que não trazia nada de particular em sua superfície. A
tonalidade das madeixas fê-lo recordar a figura materna, asmãos presas
às suas, entoando o cantochão da infância que outrora tantas vezes
negara. Era como se os mesmos cabelos
pudessem estar ali,nas lembranças mais recuadas; como se ela pudesse
jazer, anônima e esquecida, naquele lugar ermo.
Os compromissos mais urgentes foram anulados, graças ao prestígio
que o envolvia. O homem que era grande, apeqenou-se ao entrar na casa
deserta. A voz adulta, como que foi perdendo a firmeza, à medida que
buscava nas paredes a lembrança de alguém que deveria estar lá.
Informado por contatos em comum, soube que quem procurava
refugiara-se em outro país, desejando passar seus últimos dias em terras
que, para ele, quase não diziam nada.
O homem, entretanto, buscou-a, até descobri-la, recostada em leito
humilde, as mãos descarnadas e gélidas, o sorriso perene no rosto.
Seu diálogo foi repleto de palavras não ditas, de sentimentos sem
nome, de trocas sem quantia.
- Ajudei a semear um campo de mortos!- Disse ele, quando encontrou
voz.
O sorriso da mãe a fitá-lo era acolhedor, porém não o contradizia.
- Como eu posso viver com isso, daqui para frente? - Tornou, depois
de longo silêncio.
- Não pode. - aquiesceu ela, o tom brando e firme de outros tempos.
- Então, o que eu faço? - INterrogou.
- Não faça; refaça.
De lá saindo, voltou ao seu antigo posto, e começou a propagar aos
quatro cantos a verdade que vira. Não eram sementes de um mundo novo, mas
uma plantação de mortos. Descreveu os vultos diáfanos que brotavam do
solo,os cadáveres jazendo
sob a terra maculada, a flâmula de cabelo louro que poderia ser composta
pelos cabelos de qualquer mulher.
Enfurecidos, trancafiaram-no no barril de sementes.
Desesperado, viu-se degradado ao nível extremo,despido de seu nome,
sua personalidade e roupas. Os mais pérfidos tratamentos eram-lhe
ministrados ao som de música clássica, e viu morrer e matarem por causa
de um pedaço de pão, uma fatia de bolo, um sonho sonhado grande demais.
O bafejo da doença não o alijou de trabalhos exaustivos. No silêncio
da noite, ardia em febre,pondo-se a delirar sobre uma plantação de
mortos, os gritos ensandecidos casando-se com o canglor dos torturados
de toda sorte.
Pressionando contra seu rosto, porém, ele encontrou uma mão, dedos
finos e retorcidos, umbraço esquelético e triste. O rosto dela era pálido,
quase peroláceo,mas seu sorriso tinha a testura de sorrisos de anos de
sementes de verdade.
Contra seus lábios, água foi derramada, e gentis mãos guiaram sua
garganta para longe da cede excruciante.
O homem cujas idéias não couberam no seu país, trabalhava de dia,
morria à noite. Ainda assim, aquelas eram as horas de que ele gostava
mais. Os cuidados maternais daquela desconhecida,não só infundiam vida a
um corpo que não a comportava, como também limpava seu campo das
sementes daninhas.
Um dia, porém, para eles o tempo de espera acabou. Era tempo de
serem semeados. Ao ver-se há poucos passos da hora estrema, suas pernas
vacilaram. Os lábios murmuraram incoerentemente sobre a plantação de
mortos e certos cabelos que, àquele tempo, seguramente jaziam sob
terras longínquas, enquanto os demais, ao seu redor, nada diziam. Os passos lépidos
de outrora tornaram-se tíbios e vacilantes.
A ampará-lo, descobriu a mulher das noites de delírio. Tão lento era
seu caminhar e tão terna a mão que o socorria, que percorreu ospassos
derradeiros quase ouvindo as palavras da sua primeira lembrança: dandá....
Dandá... Dandá...
E antes do instante final, teve o primeiro pensamento realmente
lúcido em semanas: "antes ser semente que semeá-las."

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