Sentia orgulho ao pensar em si mesmo como um homem de educação
refinada, um perfeito cavalheiro.
Não era com esforço que admitia a idade chegando, os anos de moço se
desfazendo em um punhado de lembranças de um tempo que, agora, não
passava de nítidas ou desbotadas recordações. Não obstante, esforçava-se para encarar a
velhice recém-chegada com o mesmo senso objetivo e razoável que o caracterizara
em todos os momentos da vida. Entretanto, a mesma tranqüilidade com que
percebia a idade avançando não chegava para observar o mundo no
qual estava imerso.
No que lhe dizia respeito, as coisas não estavam boas.
Traziam, isso sim, os piores
augúrios, as mais sombrias impressões, que eram, segundo seu ponto de
vista, confirmadas aqui e a li, por fatos que multiplicavam-se mais
rápido que a sua habilidade de contá-los.
Cumprindo com seu dever fisiológico de poluir o rio local, Doroteu
pensava tudo isso, olhando, sem ver, as letras do jornal que segurava,
enquanto a mente distanciava-se cada vez mais do ambiente em que seu corpo
estava.
Lembrou da sua filha, sem marido nem paradeiro certo, trabalhando como
fotógrafa de uma revista, quase sempre em algum avião, rumo a qualquer
lugar desconhecido e vagamente ameaçador. Daquela vez, porém, ela não se
dirigia a nenhum país remoto. Viajava para lá mesmo, para a sua casa, e
a qualquer momento apertaria a campainha e irromperia pela sala, com suas
roupas espalhafatosas de tons quase sempre berrantes, o cabelo em um penteado de mau gosto,
usando, na opinião do pai, maquiagem demais para uma moça decente.
Entretanto, com tudo isso, ou apesar de tudo isso, Morgana era uma
moça decente.
Deixando o jornal despencar em um amontoado de seus iguais sobre uma
banqueta improvisada, ele inclinou-se para a papeleira, ao mesmo tempo
em que a campainha soava, incontinente.
Foi quase com um único movimento que descartou a higiene que, para
ele, era sagrada, recompôs-se e empurrou o botão de descarga.
Parece que foi também no mesmo segundo que a campainha retiniu, pela
segunda vez.
Ficou um pouco surpreso com o nível da sua ansiedade,
percebendo, quase sem se dar conta, que os comentários pouco lisonjeiros
que tecera a respeito da filha , vinham de algum mecanismo do subconsciente
para minorar a expectativa e o incomodo inerente à espera.
Atravessou a sala em largas passadas. Escancarou a porta, já com os braços
abrindo-se, só para ver um vulto miúdo e gargalhante voando, ladeira
abaixo, despreocupado e irresponsável.
A raiva subiu-lhe à mente, enquanto ele praguejava sozinho, voltando
ao banheiro, para concluir o que não fizera. Quando abria a tampa da
latrina e tornava à posição inicial, a campainha soou outra vez.
Novamente vestiu-se, a raiva esfolando a superfície de homem civilizado,
um dos últimos cavalheiros que existiam, nos tempos recentes.
Abriu a porta e já foi gritando, o vozeirão projetando-se rente à
mesma ladeira que o garotinho cruzara, poucos minutos atrás. Alguns
instantes depois, percebeu o absurdo do que fazia, ao tempo em que
aqueles olhos, castanhos e intensos, fitavam-no de alto a baixo,
inquisitivos, assustados, mas algo divertidos.
- O senhor está tão bravo assim com minha chegada, pai, a ponto de
acabar com a minha raça?
O abraço que deu à filha perdeu um pouco do vigor pela vergonha que
corava suas faces. A porta aberta, a moça dentro de casa, olhava-a,
constrangido e feliz, vendo-lhe o cabelo tricolor, a antiga argolinha no
nariz, o corpo esguio, os olhos intensos e francos, arredondados
suficiente para que tivesse uma perpétua expressão de surpresa, as
várias pulseiras que usava capturando reflexos fugidios do Sol que já
se punha.
- Pelo amor de Deus, o que houve? - Inquiriu a recém-chegada,
arrastando a mala de rodinhas pelo chão imaculado da casa de Doroteu.
Se a narrativa que ouviu tivesse sido feita por outro homem qualquer,
Morgana ter-se-ia vergado de tanto rir, em parte, porque a coisa toda
era bastante engraçada, em parte por que, a maioria das pessoas, quando
consentia em partilhar com os outros algo assim, esperava justamente
essa reação, talvez como forma de perder a vergonha pelo que acontecera.
Entretanto, o tom sério e ultrajado de seu pai não dava azo a essas
expansões, de modo que foi uma Morgana quase contrita que ouviu a curta
história, sentindo as notas de indignação e rancor na voz paterna.
- Ah, fala sério, pai, é só uma criança!
- Que vai crescer e ser um homem, em um futuro próximo. Será que não
percebe, Morgana, que é nessa idade que se aprende a ter respeito pelos
outros?
- Não seja tão radical! a VIDA É LONGA, ELE VAI TER TEMPO DE SOBRA PARA
APRENDER RESPEITO. aLÉM DO MAIS, COMO O SENHOR ESPERAVA QUE ELE
Adivinhasse o que estava fazendo?
- O fato de não poder adivinhar é um dos muitos motivos que fazem com
que seja uma atitude reprochável, minha filha. Grosseira, de péssimo
tom, desnecessária, inconveniente...
Com algum custo, Morgana acalmou o genitor, fazendo cintilar as
pulseiras de seus braços quando estendia as mãos para o tocar. Como
um menino manhoso e como o velho que se estava tornando, Doroteu
recebeu os carinhos com fingida contrição, parecendo ignorar o prazer
evidente que escapava de seus olhos.
NO dia seguinte, esperava a filha, que fora enviar umas fotos pelo
correio.
Estava ansioso por sua chegada, novamente
sentado no vaso sanitário, quando a campainha tocou. Pego de surpresa, ergueu-se de
qualquer modo, sem sequer puxar a descarga, ajeitando a roupa enquanto
cruzava a sala.
Ao abrir a porta, viu, outra vez, o vulto magricela e gargalhante
descendo a ladeira. Teve uma brevíssima visão daquele pivete, anos
crescido, tornando-se mais ousado, jogando garrafas cheias de
excrementos no seu quintal, ou apertando a sua campainha quando
retornasse
de algum lugar pouco recomendável, depois das três da manhã. Decidiu,
portanto, cortar o mal pela raiz. Usando de todas as suas forças,
disparou ladeira abaixo, os chinelos ressoando ameaçadoramente pelos
paralelepípedos. AO ruído de corrida, vizinhos foram assomando às
janelas e portas das casas. As possibilidades de Doroteu pareciam nulas, até que o
garotinho tropeçou e caiu redondamente, o cotovelo encontrando, sem
reservas, o chão áspero do final da ladeira.
Doroteu aproximou-se, abaixou-se e ergueu o menino pelo colarinho,
sem contemplações,
obrigando-o a levantar-se. Em seguida, arrastou-o ladeira acima, sem dizer
palavra, irritado até quase o limite, certamente, tão irritado quanto
poderia ficar um verdadeiro cavalheiro.
Alguns vizinhos davam risadinhas mal disfarçadas quando ele chegou à
casa, empurrou o menino lá para dentro e trancou o portão e a porta.
Logo que se viu dentro da casa do velho, o garotinho, que não devia
ter mais que sete anos, sentou-se em uma cadeira, sem que para isso
tivesse recebido qualquer convite. Por algum motivo oculto, isso
multiplicou a ira do velho, que voltou a erguê-lo pelo colarinho,
dizendo:
- Nunca lhe ensinaram que se deve esperar um convite para sentar?
O garoto piscou, parecendo assustado, o peito magro subindo e
descendo às exigências de uma respiração descompassada. Sua mão sangrava
debilmente, mas nenhum dos dois parecia se importar.
- O telefone da sua mãe. - Exigiu Doroteu, os olhos perfurando as
órbitas do infante.
O garotinho abriu a boca, confuso e assustado, as lágrimas bordejando-lhe
as pestanas negras.
- Ah, por favor, moço, faz assim não, eu juro que não faço mais,.
- É a conivência com o mal que gera os criminosos. - E, em
seguida, em um tom muito mais alto e quase descontrolado, reiterou o
pedido, enfatizando-o com um contundente e nada cavalheiresco soco na
mesa.
O pequeno tremeu, agora sem tentar reprimir as lágrimas. Doroteu
apenas continuou a olhar, como se estivesse esperando. A autoridade do
mais velho ganhava campo, minuto a minuto. Depois de alguns
momentos, os lábios do inesperado visitante mexeram-se com relutância,
mal vocalizando os oito dígitos.
Embora esperasse por aquilo, começou a soluçar, quando o
homem estendeu a mão para o aparelho e começou a discar, grossas bagas de
suor escorrendo-lhe da testa, provavelmente pelo esforço da corrida
recente.
- Qual o nome da sua mãe? - Exigiu, interrompendo-se bruscamente.
O nome foi soprado na direção dele, enquanto recomeçava a discar,
assentindo vagamente.
- Alô... - Fungadelas. - Dona Beatriz? Olá, dona Beatriz. Sinto
muito por incomodá-la. Eu sou
Doroteu Dornelas, seu vizinho... - ... Débeis soluços... - Ah, não, está tudo bem... OU melhor,
quase tudo bem. Sim, eu estou bem. Escute, dona Beatriz, eu estou aqui
com seu filho em minha casa, e gostaria muito que a senhora me cedesse
alguns minutos do seu tempo, para conversarmos um pouco sobre ele. ...
Certamente a senhora entenderá... Eu prefiro tratar do assunto
pessoalmente. Sim... #Compreendo. Nesse caso, vamos esperá-la aqui, os
dois...
Ao depositar o fone no gancho, os olhos de Doroteu foram
instintivamente atraídos para o relógio que estava dependurado na
parede, marcando, com preguiça, dez minutos para as seis da tarde. Dez
minutos vieram, um por um, e perderam-se, na vasta coleção dos momentos
inúteis, até que a campainha soou, mais uma vez.
A porta aberta revelou Morgana que retornava, os cabelos agitados
pelo vento, as três cores misturadas, o ar lépido e faceiro de quem está
muito feliz com a vida e consigo mesma.
Seu olhar abarcou, em uma rápida sucessão, toda a estranheza da
cena, e sua saldação foi substituída pela pergunta que lhe pareceu mais
natural:
- O menino machucou aonde?
A alegria do pai foi substituída por um discreto ciúme por ter sido
o pequeno infrator o principal alvo da sua atenção, até então.
- Ele estava correndo de mim. - Disse, um ar desafiador nos olhos
que a encararam. Continuou:
- Eu estava correndo atrás dele, como facilmente pode deduzir,
porque ele apertou minha campainha.
A gargalhada que veio a seguir aliviou a tenção do garoto e plantou
a carranca mais assustadora na fisionomia do velho homem.
- Espera aí, o senhor está me dizendo que saiu da sua casa, para
perseguir um menino que apertou sua campainha e correu, é isso?
Os dois envolvidos acenaram, os gestos iguais não podendo ser mais
dicotômicos nas expressões que desenhavam em um e no outro.
- Pai, quem aqui é a criança, o senhor ou ele?
O intenso ar de reprovação nasceu e foi varrido do velho pelo
retinir da campainha. Os três levantaram-se, mas foi o anfitrião que
abriu a porta.
Beatriz entrou, tentando, sem sucesso, abarcar toda a
situação, enquanto colocava uma delicada bolsa sobre a mesa.
- Alex, meu filho, o que foi que aconteceu? - Perguntou ela,
lançando-se na direção do garoto.
As lágrimas renovaram-se nas pálpebras do interpelado, enquanto um
fungado, que mesmo à Morgana soou artificial, escapou, por entre as
palavras que disse a seguir:
- Ele correu atrás de mim.
A recém-chegada olhou o dono da casa , momentaneamente aturdida demais para dizer
fosse o que fosse. Doroteu empertigou-se todo, tentando assumir o controle
da situação.
- Peço que me desculpe, minha senhora. Vou explicar toda a situação.
Seu filho anda com o desagradável hábito de apertar a campainha dos
outros e sair correndo. A senhora
há de convir que esta é uma atitude bastante desrespeitosa, desagradável
e indelicada, podendo, caso não seja corretamente suprimida, abrir
passagem a outras manifestações de desrespeito, possivelmente mais
agressivas e menos inocentes.
Morgana retirou o olhar cúmplice que endereçava furtivamente ao
menino. Então era isso? Agora era a vez da mãe empertigar-se:,
- O senhor prendeu meu filho aqui, fez questão de me tirar da minha
casa, do meu merecido descanso, para me fazer vir aqui buscá-lo por
causa disso? Tenha a santa paciência!
O garoto acompanhava o diálogo vidrado, como se assistisse a uma
partida disputada e interessantíssima. Morgana olhava para baixo, algo
entre admirada e constrangida com a situação.
- Dona Beatriz, meu senso ético não me permite concordar com a
senhora. Sei que, como mulher inteligente, sabe que muitos dos maus
hábitos que envergonham os pais na juventude de seus filhos tiveram sua
gênese em pequenas travessuras infantis, nas quais eles denunciaram sua
falta de percepção sobre os verdadeiros limites do bom tom e da ética.
Na ocasião, muitos atribuem esses deslizes à pouca idade, não atendendo
à necessidade de corrigenda premente.
Sem a reprimenda
justa, perdeu-se o ensejo educativo. O que discuto aqui, não é apenas o
ato em si, impertinente por natureza, mas também a percepção egoísta
implícita de que é divertido ver um indivíduo deixar o que estiver
fazendo, simplesmente para abrir a porta e ver seu vulto desapareceer.
Não importam os incômodos que cause, desde que ele esteja se divertindo.
- O senhor está exagerando! Isso é absurdo! Quem nunca brincou
disso, quando era pequeno? Eu mesma brinquei, na minha cidade natal.
Todo mundo faz isso! Todo mundo já fez isso! E nem todo mundo que faz
isso vai virar bandido. - Retorquiu a mulher, alterando-se,
levantando-se da cadeira que lhe fora oferecida.
Doroteu piscou, aparentemente nocauteado demais para reagir. Na
verdade, porém, lamentava por aquela criança e, afinal, não via com
muita tristeza a eminência de sair daquela vida, em um tempo que não
poderia demorar-se muito mais.
- E como saberemos? - Perguntou, os olhos intensos dardejando
da mulher para a filha, ao mesmo tempo em que o menino, astuciosamente,
tentava esgueirar-se do seu lugar para a porta entreaberta.
- Saber o quê, meu senhor? - INdagou dona Beatriz, praticamente
cuspindo a última palavra.
- Se a impunidade gerará ou não maiores conseqüências. A senhora disse "nem
todos...".
A mãe suspirou, imitando o filho ao se levantar. Colocou a bolsa em
uma mão e atraiu a mão do rebento para a outra, virando-se para a porta e
abrindo-a, fazendo menção de passar para o quintal minúsculo, mas bem
cuidado de Doroteu.
- Já entendi, seu Doroteu. Alex não vai mais apertar a campainha do
senhor e, se fizer, o senhor me avisa, que eu resolvo lá em casa com
ele.
Doroteu acenou, resignado à mente obtusa da outra, ao mesmo tempo em
que adiantava-se para abrir-lhe o portão, em um gesto de gentileza que
apenas a filha anotou.
Após eles passarem, ficou algum tempo parado diante do portão
aberto, justo o tempo suficiente para ouvir o comentário que rolou
ladeira abaixo:
- Velho mais louco! Pensa que eu tenho tempo pra perder? E você,
Alex, não me provoque ele nunca mais. Sabe lá o que ele é capaz de
fazer. Imagine só, implicar desse jeito com uma criança tão pequena...
O comentário jocoso e aparentemente relaxante que faria, morreu na
garganta de Morgana, quando o pai encostou o portão e voltou para a
sala.
Por um mecanismo inexplicável, mas definitivamente real, ele
pareceu-lhe mais velho, os ombros descaídos e o andar, pela primeira
vez, mais lento.
- Ah, pai... Por que o senhor tem essa mania de querer mudar o
mundo? - Indagou com um olhar terno e breve, ao mesmo tempo em que
se apoderava do controle remoto e ligava a televisão.
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