Se fosse verdade

Laura puxou o terceiro fio de cabelo e começou a brincar com ele,

enrolando-o no indicador, ao tempo em que a tabela periódia a sua frente não

lhe dizia nada.

Dentro de si sentia o chamado de todos os excluídos da Terra,

enquanto era obrigada a viver apenas para si, investindo a maior parte

do seu tempo em uma carreira da qual sequer estava certa.

Sentada diante da escrivaninha, Laura sentia o peso de todas essas

questões, por isso olhava sem ver os elementos entrepostos e o Sol

desmaiava através da paisagem que a abertura no vidro lhe permitia ver.

Exausta, deixou-se cair sobre o livro intimidante, usando ainda o

uniforme da escola, os olhos vermelhos da última avalanche de lágrimas.

Acordou quando não mais se via a tardinha e uma luz de pirilampo lhe

acenava da janela aberta.

Na noite já madura, um céu de estrelas impossíveis, ele estava lá:

rosto sem idade, alma de criança, ternura de anjo, decisão de

missionário:

- Vim te buscar, Laura. Vamos! É hora de ouvir o teu chamado.

Sem pensar, a garota debruçou-se sobre o parapeito, ignorando a roupa

que não trocara desde a manhã, ignorando seus cabelos desalinhados,

ignorando a prova do dia seguinte para a qual não estudara, a alma

enleada por aquele fantástico estranho que, sem mais, parecia raptá-la

para longe dali.

Juntos, pois, passaram a noite, acalentando meninos tenros com olhos

anciãos, deixando anonimamente pelas ruas pães com mortadela, sonhos

recém-feitos, a esperança apresentando o mais formoso balé de ternura

diante dos olhos dos mais aflitos.

Era madrugada quando eles entraram pela janela, Laura outra vez de

volta ao seu cárcere cor-de-rosa. No silêncio que se seguiu, delicado e

perfeito, suas mãos se encontraram, e um amor indizível perpassou

através deles. Um amor que expressou-se em um olhar comprido, capaz de

abranger a Terra inteira em um halo dulcificante de ternura e harmônicas

virações.

Depois desse instante ele partiu, sua luz de pirilampo perdendo-se pela

noite já senil, ao tempo em que Laura se escondia sobre os lençóis, todo

seu ser preenchido pelo maior amor do mundo.

Na semana seguinte ele voltou, e na outra ainda estava lá. Nos

próximos meses estavam sempre juntos pela noite, repartindo amor no

anonimato santificante, preenchidos os próprios corações de um carinho

recíproco, mas sem nome nem paralelos.

De repente, sem aviso, deixou de vir. Durante todas as noites seguintes

ela o esperava à janela, os carros passando como pontos abaixo do

vigésimo andar em que vivia.

Ela o esperou enquanto experimentava seu vestido de formatura, e na

sua primeira embriaguez, julgou ser capaz de vê-lo dançando através das

dores

de cabeça, se conseguisse se fixar na questão por tempo suficiente. Tudo

ilusão.

Com o passar dos anos, quase podia garantir que ele jamais existira. Nem

ele, nem todo aquele amor capaz de salvar o mundo.

Até que a vida, implacável, também sepultou seus ideais de exceção.

Aprendeu a acreditar que sua carreira era realmente a coisa mais

importante que havia, e os meninos de olhos anciãos pararam de chamar

sua atenção ao longo das ruas.

Em determinado ponto achou que amava bastante para contrair núpcias

e casou, tendo uma filhinha dois anos mais tarde.

Acabava de colocar sua pequena de sete anos na cama e pensava em

ligar para seu mais novo amante quando viu, num

rápido vislumbre traído pela veneziana, uma luz de pirilampo alumbrando

na noite escura.

Afastou-a de súbito e viu, flutuando no parapeito, a mesma figura

sem idade nem paralelos, sorrindo-lhe de um tempo em que os anos jamais

passam e ainda se pode continuar a ser apenas uma menina que puxa os

cabelos e rói as unhas.

- Vim atender ao teu chamado, Laura. Vamos...

Ela o olhou e seus olhos pareceram atrair toda tristeza do mundo,

enquanto respondia:

- Eu não posso mais. Não ouço o chamado. Acabou.

Laura sentiu mais que viu-lhe a expressão de assombro genuíno:

- Acabou, como? O amor não termina, tampouco os ideais! Não sabes

que é deles que são feitos os progressos no mundo?

As lágrimas silenciosas foram sua única resposta.

- Laura? - O tom doce pareceu quase alçá-la do chão, mas ela

resistiu, envergonhada.

- Não posso. Eu não sou mais...

- Mas, como? - Quis saber, agora verdadeiramente curioso.

- Não me pode ver, não é? Deixa que acenda a luz, e então

compreenderá.

Ela queria que ele visse os olhos realistas que desaprenderam a

sonhar, as mãos quase esquecidas de fazer o belo, os cabelos aclimatados

às exigências da estação. Ela queria que ele visse os dentes escurecidos

de nicotina, o preço que lhe cobrava ter que ser uma mulher moderna.

Queria que ele visse a casa impecável, os tapetes que certamente eram

melhores que as camas de todos aqueles meninos.

- Deixa que acenda a luz - Sussurrou ela no escuro, fazendo mensão

de afastar-se.

- Não, não, não faça isso! - Suplicou-lhe, e, pela primeira vez em sua

vida experimentava o medo. - Por favor... Vem comigo.

Laura enxugou os olhos. O raspar de metal contra metal enquanto ela

fechava a janela pareceu encher seus ouvidos da febre de todos os meninos

sem assistência, mas a alucinação passou, assim que ela pôs em seu lugar

a veneziana e deu-lhe as costas.

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