Alguém no seu lugar
- Vamos lá... Fica comigo... - repetiu ele, pela segunda vez,
àquela noite. Já quase perdera as contas do número de vezes que o
fizera, e, afinal, para quê?
Tudo começara uns dois meses atrás. Ele era um ator famoso,
recém-convertido em diretor. Bordejava os cinqüenta anos com o mesmo
vigor dos trinta, e ensaiava seu grupo em um teatro do centro da
cidade. Ela estivera na última
fileira, olhando-o, algo mesmerizada. Ele
não a vira de imediato, mas, logo que o fizera, não pôde olhar para
outro lado. Pela primeira vez, errou os textos, foi um mal coordenador,
e mais de uma pessoa riu as suas custas, depois que viu a direção do seu
olhar.
Mas, afinal, o que ela tinha de mais? Nada. Uns olhos castanhos
levemente amendoados, uma boca doce, de lábiios carnudos. O nariz
afilado e bem proporcionado, o queixo pontudo, sem desarmonizar do
conjunto. Mas dela um certo ar indefinível evolava, emprestando-lhe um
matiz intangível e realmente cativante. O cabelo, de um corte vulgar,
parecia algo translúcido, refletindo debilmente o luar lá fora, e, de
alguma maneira, parecia que todo um universo abrigava-se por trás da sua
retina.
Mas aquilo seria suficiente para o impressionar de tal forma? A ele, que,
virtualmente, tinha dúzias e dúzias de mulheres a seus pés? E por que,
não sendo ela nem rica, nem bonita, ousava negaciar diante de um homem
ao qual admirava suficientemente para o ir assistir a ensaiar em um teatro,
sem ser convidada?
Sentados no passeio público, perto de um carrinho de
cachorro-quente, ele reparava, mais uma vez, como nela o gesto mais
casual adquiria um ar delicado.
- Vamos lá... Fica comigo... - Ele dizia-lhe, enquanto ela, fingindo
estar absorvida em observar outras pessoas, evitava seu olhar
perquiridor.
Ainda assim, sua cabeça moveu-se, para a direita, para a esquerda,
novamente para a direita, retornando ao centro.
- Você, então, não gosta de mim?
Ela nada respondeu. O ir e vir das pessoas, o leve vislumbre de suas
vestes e a audição de suas conversas, fazia, de certa maneira, com que
tudo aquilo parecesse irreal.
- Quer ir lá em casa? - Perguntou, inesperadamente. - Tenho visitas
interessantes lá, agora.
Ele não pôde sopitar a surpresa que o invadiu.
- Isso é um "sim"?
Ela sorriu, cansada, em resposta, levantando-se em seguida, sem
dirigir-lhe a palavra.
Dentro do carro dele, conversaram apenas o suficiente para ela lhe
indicar sua moradia.
Era incrível, para ele, depois de tantos meses, ser convidado,
assim, de súbito, para a casa dela. O que aquilo quereria dizer?
Enquanto guiava, lembrava-se da aproximação, do quanto ela lhe
parecera, simultaneamente, cativada, apaixonada e reticente,
escorregadia e algo furtiva, até. Seu comportamento transportara-o da
surpreza à irritação, da cólera franca à perplexidade, deixando, por
muito pouco, de atingir as raias do desespero.
Para ele, em se tratando de amor, as coisas eram muito simples: ou
sim, ou não. Não compreendia a hesitação após a reciprocidade
estabelecida.
Tratava-se de uma casa relativamente grande, localizada em um bairro
residencial um pouco esquecido, graças ao crescimento desproporcional,
nos últimos anos.
À porta, foram saudados por uma mulher de meia idade. Da sala, uma
almágama de vozes relativamente exautadas, fazia-se ouvir.
- Tia Sueli, - proferiu ajovem.
Após os cumprimentos indispensáveis, ela fê-lo entrar. O ambiente era
mobiliado com bom gosto e simplicidade. A sala austera, em lugar da
indefectível televisão, tinha, como adorno principal, um antigo piano.
Dispostos ao redor dele, alguns sofás em estado mais ou menos adiantados
de deterioração.
Um dos presentes reconheceu-o rapidamente, e, algo tímido, foi
sentar-se a seu lado.
- Mas não é você o ator... - Começou, empolgado, e logo estavam
envolvidos em uma palestra agradável para o recém-chegado, e
desinteressante, para ele.
Enquanto isso, a senhora apresentada como Sueli e sua pretendida
puseram-se de pé, diante do piano, e iniciaram a execução de números
populares, todavia arranjados para serem tocados a quatro mãos.
A ele ficou a impressão de que as mulheres fizeram aquilo a vida
inteira. A seguir, iniciaram peças graciosas dos clássicos, impondo à
sala um silêncio gradativo. Ele percebeu, entretanto, que a mais nova
das mulheres era instruída, sem dúvida, mas não gozava de um dom nato;
antes, pelo contrário, excluindo-lhe a técnica em que fora treinada,
era, sem dúvida, um pouco abaixo do medíocre. Tocava porque
ensinaram-lhe, não porque tivesse um talento real. Ainda assim, era
agradabilíssimo ver as duas, enchendo a sala com aquelas harmonias já
tão conhecidas, mas, nem por isso, desgastadas.
Após alguns números mais, a jovem retirou-se, indo conversar no
outro lado da sala, com um senhor já idoso, enquanto sua tia executava,
com maestria singular, uma peça de Mozart.
Em seguida, a mulher chamada Sueli chamou-a. No momento em que
atendia ao chamado, seus olhos encontraram-se com os de seu convidado
e, por um momento, ele ficou surpreendido: havia algo que, sem dúvida,
jamais estivera ali. Estaria louco, por acaso? Sem dúvida ali estava um
brilho inaldito, como se, miraculosamente, outros olhos d se houvessem
sobrepostos aos dela, atingindo um efeito sobrenatural.
Sentada ao piano, agora, seus dedos produziam uma cascata de notas
cristalinas, em um fluir calmo e hipnotisante. A sala quedou-se,
estranhamente quieta, como que estivessem todos alerta. Mas se ele
advertiu isso por um segundo, foi algo casual. Na primeira vez em que
se cruzaram, ela o olhava com ar mesmerizado; naquela noite, entretanto,
ele a olhava tal como faria um legítimo adorador.
As notas, junto com sua expressão francamente alterada, geravam uma
atmosfera de sonho, beleza e mistério. A fluidez parecia hipnotizá-lo,
empurrando-o para remotas salas antiquíssimas, com tapessarias
intrincadas e gerações e gerações retratadas em quadros antigos,
dependurados nas paredes.
De súbito uma pausa que, definitivamente, não deveria estar ali. Foi
de apenas um segundo, e foi impressionante, todavia, a quantidade de
coisas que aconteceram naquele curto espaço de tempo. Sua expressão,
angélica e enleada, tornou-se furiosa e desarticulada. Os olhos
pareceram fulgir brevemente com um tom hialino e cáustico. O rosto
contorceu-se em uma máscara de ódio insuspeitável, enquanto os demais
presentes pareciam resignados, embora aturdidos.
Do piano, rapidamente, passou a retirar sons agônicos e
desesperados, qual fora um habitante das zonas infernais, desejoso de
comunicar aos vivos o caos em que sua alma se debatia. Embora seguisse
tecnicamente perfeita, era desesperadora a música que agora se ouvia:
turva, deprimente, agressiva, quase bestial.
Os olhos dele buscaram os dela, como apedir explicações, e, de uma
maneira que não soube explicar, posteriormente, compreendeu que ela não estava
mais ali.
"Deus,que atriz!", - pensou ele, visivelmente chocado.
Em um átimo, contudo, tudo mudou. Os sonss, agora, eram dissonantes e
incômodos, como se alguém houvesse decidido martelar as teclas. No
arroubo inicial, ela pusera-se de pé.; Agora, após alguns minutos
executando a cacofonia final, seu corpo deixara-se cair no banco,
visivelmente esgotado, a testa e as costas da blusa empapadas de suór.
Rapidamente alcançaram-lhe copos de água e tentaram fazer parecer
que tudo aquilo era normal, mas era indiscutível uma certa apreensão em
seus semblantes. Ele, por sua vez, passo a passo aproximou-se, mais que
nunca maravilhado e encantado.
- Meu Deus, Emília... - Disse ele, tomando-lhe uma das mãos,
percebendo-lhe a frialdade - Que atriz magnífica você é!
Ela sorriu-lhe cansada, em resposta, e, uma vez mais, balançou a
cabeça.
- O quê? Claro que é! O que você fez? Artes cênicas? Aonde?
Surpreso, observou que todos o estavam olhando, parecendo atônitos e
penalizados.
- O que foi? - Inquiriu ele, perguntando para ninguém, em especial.
- Isso é loucura, Leonel.
- O quê? - indagou, confuso, as sobrancelhas erguidas, quase juntas.
- O que você está querendo dizer?
- O que você começa a entender. Não era eu. Raramente sou eu.
- Isso é alguma espécie de modéstia? - Indagou, parecendo,
estranhamente, na defensiva.
O sorriso cansado da outra deu lugar a uma ironia orlada de
sarcasmo.
- Não era eu. Nem sempre eu sou eu. Loucura, creio. É o que todos
creem, inclusive o médico. Hereditário, acho. Minha mãe era assim. Minha
avó era assim.
- A metade das minhas alunas gostaria de ter essa loucura. -
Concedeu ele, olhando inquisitivamente para todos os presentes, como
esperando que eles o apoiassem. Mas apoio nenhum veio.
- Emília sofre de alguma desfunção nervosa, que nem ela, nem
quaisquer remédios podem controlar. - Disse a senhora chamada Sueli,
falando do ponto extremo da sala. Dentre os presentes, nenhum ar de
surpresa ou constrangimento.
- Agora, acho que compreende porque eu não desejo qualquer laço
contigo. Seria uma ameaça para sua carreira.
- Não só para a carreira, mas também para sua integridade. -
Confirmou Sueli, agora de pé, olhando diretamente para ele. - O que os
jornais diriam?
- Bem, se estiver dizendo a verdade e, se, o que quer que isso
seja, expressar-se de uma forma tão... Incrível...
- Acontece em quase qualquer lugar. - Disse Emília, parecendo, de
repente, completamente exausta. - e nem sempre é tão inofencivo assim.
Como se eu tivesse, dentro de mim, mais três ou quatro outras pessoas,
interpondo-se, atuando, dividindo meu corpo, minha vida...
E, na medida em que dizia isso, toda sua expressão alterava-se, uma
vez mais. O corpo vergava-se, como que sucumbido ao peso de anos que
ainda não o tinham assoitado; a pele, incompreencivelmente, parecia
pender flácida, de alguns pontos. Os olhos, de súbito, pareceram
enevoados por uma catarata outrora inexistente. Sua voz saiu-lhe gasta e
cansada, como se, indiscutivelmente, pertencesse a outra pessoa.
- Sinhozinho quer ter alguma coisa com ela, é? - Perguntou, e o som
era perturbadoramente cemelhante a um cacarejo.
Uma risada cortante fez seus lábios dobrarem-se, como se lá não
houvesse uma dentadura perfeita.
- Bem, terá de ficar também comigo. - Murmurou ela, parecendo, mais
que nunca, uma bruxa velha.
Deus dois passos na direção dele, arrastando uma perna, com visível
dificuldade.
- O que isso parece, meu sinhô? - Indagou, mas, o que quer que ele
pensasse, não teve tempo de responder, pois nova metamorfose nela se
operava.
De pé, na sala modesta, parecia estar uma terceira pessoa, embora
ocupasse ainda o mesmo corpo. O tronco aprumou-se, de súbito. Os olhos
tornaram-se límpidos, e quase pareceram de um azul mais sentido, que
enxergado. Os lábios pareceram afinar-se, em uma contração delicada,
mas, efetiva. Um sorriso perpétuo modificou-lhe a fisionomia, dando-lhe
um ar tão doce, que não poderia ser real. Agora, tão próximos estavam,
que ela pôde segurar-lhe a mão. Levou-a aos lábios, com uma mesura.
- Não nos conhecemos de muito tempo, meu querido? - Quis saber, e
sua voz era perfeitamente musical.
Levantou-lhe o queixo com uma das mãos, ante à presença muda da
assistência, e olhou no fundo dos seus olhos.
- Agora Leonel, antes Mateus, Antes Malaquias, antes Romão e antes...
- O quê? - Perguntou ele, algo assustado.
Seu sorriso acolhedor e sobrenatural poderia acalmar a cidade
inteira.
- Ora, não tente entender agora, meu querido... Não agora... Quanto
tempo faz... Oh, céus, quanto, quanto tempo faz... Olha-me. Você me ama,
não é?
Ele fez que sim, aturdido, mas certo de que a amava, independendo de
quantas ela fosse ou de quem fosse aquela que lhe falava, naquele
momento.
Dois meses depois, casaram-se, apesar dos protestos dela e das
cavilações da mídia. Ao longo dos anos, ele aprendeu a conviver com
cada uma daquelas estranhas personagens que partilhavam-lhe o corpo.
Chegou até a amar alguma delas, e sempre tinha as desculpas mais
inacreditáveis para afastar a loucura das cogitações dos que,
inadvertidamente, viam-na em um de seus "surtos" inesperados e
indisfarsáveis. Emília era uma triz nata; Emília era dona de um estranho
senso de humor; Emília era capaz de tudo para o impressionar.
Com o passar dos anos, porém, cada vez era preciso mais imaginação e
boa-vontade para aceitar-lhe as justificativas, ainda que se superassem
de cada vez, com ingenho e habilidade. Agora, ela não mais saía de casa,
e Leonel sequer podia prever quem o receberia, no final de cada dia. De
uma vez, entretanto, ninguém o fez. Abriu a porta e chamou, a voz
ecoando, alta e inquisitiva, pela casa ampla e silenciosa.
Os pés subiram pela escada em caracol, levando-o até ao quarto.
Deitada sobre a cama, Emília jazia, uma poça de sangue no edredon
alvo. Os pulsos cortados, a lâmina assassina ainda pendendo-lhe da mão
caída em ângulo estranho.
Os olhos abertos, sem vida, porém, não lhe deixaram dúvidas de que,
no momento derradeiro, era a mulher de olhos castanhos e comuns que
estava na posse do seu corpo. No ar pairava a delicada melodia
despendida pela musa encantadora daquele primeiro dia, aquela que ,
aparentemente, conhecia-o de tantos e tantos séculos atrás.
Vira a sombra do suicídio perpassar os olhos da esposa não uma vez
e, com mais ingenho e arte que o empregado em toda sua gloriosa
carreira, tentou dissuade-la , mas, sem êxito.
Perguntou-se por que ela não se persignara, no momento derradeiro,
sem jamais poder saber quantas e quantas vezes ela o fizera, até então.
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