Descoberta

Descoberta



Rodavam fazia alguns minutos, quando ela disse, naquele tom que

pretendia fosse casual, mas que ele sabia ter sido estudado por minutos,

senão horas a fio:

- Eu tenho a impressão de ter visto essa menina.

Ele pareceu não ter ouvido por um instante, enquanto preparava-se

intimamente para o que estava por vir.

- Menina? Que menina? - seguiu a direção do dedo da esposa, que

apontava abertamente para um vulto montado em uma bicicleta, quase

indistinto , no caos do trânsito. - Ah... Essa...

- É sua amante, Márcio?

Era ali que ela quisera chegar, desde o princípio. Percebeu com um

misto de tédio e resignação. Molhou os lábios com a língua, antes de

responder.

- Amante? Por favor, Maria Cecília!

Ao som das palavras do outro, ela empertigou-se. O Sol que se punha,

refletiu nas unhas vermelhas, imaculadas. Seus olhos, agora alertas,

mostravam que ela estava mais que pronta para a batalha verbal.

- Vai dizer que não reparou na menina? Ela estava na porta do seu

trabalho, quando eu fui te pegar, e não é a primeira vez.

- Do meu trabalho?

- VocÊ tem que parecer um idiota?

- Você tem que ser agressiva?

- VocÊ não reparou na menina. - e agora soava irônica; Para ele,

incompreensivelmente ofendida.

- Não. Óbvio que não. Você tem idéia de quantas meninas estão na

porta do meu trabalho, Maria Cecília? Pelo amor de Deus, eu sou

professor. E, depois, faz idéia de quantas dessas meninas

podem ter a rota coincidente com a nossa?

- Não acredito.

- Bem, não é meu o problema. Pensei que o seu problema fosse eu ter

reparado na menina. Reparado até demais. Então eu lhe digo que não

reparei na menina e você continua tendo um problema.

Ela sentiu-se aviltada. Detestava a forma como ele reduzia tudo a um

denominador razoável, no qual ela e suas percepções sempre acabavam

ridicularizadas; odiava aquele tom calmo, inalterável, e mesmo a

irritação do outro lhe parecia um indisfarçável ar de superioridade.

- VocÊ é ridículo...

Márcio olhou para o tráfego, um instante. Dobrou uma esquina,

deixando para trás o seu posto de gasolina favorito. Pensara em

abastecer antes de chegar à casa, mas, como sempre, Maria Cecília

continuaria aquela briga absurda na frente de qualquer um. Ele detestava

briga. Especialmente, brigas surgidas do nada. Elas o exauriam,

provocavam-lhe dores de cabeça. Ela sempre queria conduzir tudo para um

patamar emocional, no qual só suas emoções e impressões tiradas do nada

tinham alguma valia. Concretamente, só havia um aspecto da sua vida em

comum que não conduzia à discussões tão inúteis quanto desgastantes, e

foi nele que ele se viu buscando refúgio, mais uma vez.

- E você é deliciosa. - Viu-se dizer, forçando um tom tépido e

urgente que não era sentido, de modo algum. Não importava. O desejo

tornar-se-ia legítimo, assim que a tivesse a poucos passos de trajar

nenhuma, nenhuma roupa. Sentia-se totalmente ridículo, nesses momentos,

mas isso não significava nada, se, em troca, desfrutasse um pouco de

paz.

- Eu sabia que ia terminar assim.

- Você faz de propósito, não é...? - Perguntou, esperando que seus

olhos agora tivessem um brilho de desejo incontido.

- Seu bobo! - Ela disse, rindo, tocando-lhe o ombro, a conhecida

chama, indiscutivelmente, animando-lhe os olhos castanhos.

- Faz, eu sei que faz. - Disse ele, passando pela casa sem parar.

- Espera, o que você pensa que está fazendo?

- Andando de carro, é óbvio.

- Pensei que chegáramos em casa...

Ele obrigou-se a sorrir, projetando imagens de colegiais na mente,

na tentativa de que seu entusiasmo soasse mais convincente.

- E chegamos... Mas já estamos saindo...

- Para onde? - Perguntou ela, o rosto totalmente voltado na direção

dele, a expressão agora alegre, relaxada. Uma réstia de Sol alojou-se por

um segundo no seu dedo mínimo, no momento em que ela erguia a mão

para empurrar uma mecha do cabelo castanho para trás da orelha.

- De verdade, você não é capaz de adivinhar sozinha?



...



A expressão dela estava satisfeita, apesar de cansada. Sentada na

cadeira, parecia feliz e realizada. Ao seu lado, Márcio fingia dormir.

Sentia-se aviltado por si mesmo, violado por ter de fingir uma paixão

que não existia há tempos, simplesmente para ter paz. Será que aquela

briga inútil fora, de fato, no afã de conduzir àquilo? Será que ela

julgava, realmente, aquele preâmbulo doentio parte do que considerava

uma "sedução elaborada"?,

Prendeu a respiração. Sentiu-se humilhado por ter de comprar

estabilidade com sexo. Soltou a respiração, observando o respeito por si

mesmo deixá-lo, junto com o ar que retivera. Abriu os olhos devagar e

fitou a mulher que o olhava. Reprimiu uma expressão de desagrado.



***



Foi na saída da escola. Fazia dias que eu ia correndo para o

prédio do cursinho. Vou lá desde que descobri onde fica. A mulher

dele chegou. Pelo menos penso que seja sua mulher. Ele desceu e entrou

no carro. O carro saiu descendo a rua. Então eu pensei na minha

bicicleta. Pensei e já estava indo atrás. Tinha que ver aonde

morava. Mas para quê?

Engraçado que tudo eu faço primeiro para pensar depois. Foi assim

quando liguei pra casa dele. Ligava e desligava e ele nunca atendia. Mas um

dia ele atendeu. Fiquei ouvindo aquela voz e imaginando-a me dizer

coisas bem diferentes de "alô". Pouco a pouco, aprendi seus horários.

Aprendi a que horas era mais fácil de ele atender. Também aprendi que

tinha outra menina lá que parecia ter a minha idade. Aprendi também que

tinha uma mulher.

Mas hoje eu segui. Foi difícil, porque o trânsito estava no horário

mais concorrido. Cheguei aonde ele morava. Pensei que

ia descer com a mulher. Nem desceu o vidro. Mas então eu voltei para

casa. Já estava tarde demais para mim.





***



- Olha aí ela outra vez.

Ele mal e mal reprimiu o asco. Outra vez? Olhou pela janela e

avistou a garota, de fato, em uma bicicleta. Contudo, jamais

demonstraria que já a localizara. Deus sabe que inferências ela poderia

fazer, à partir daquele fato.

- Ela quem?

- A menina te seguindo.

- Que menina? - Voltou a olhar na direção da garota. Seus olhos

encontraram-se com os da esposa. Ele suspirou, resignado.

- Confessa, vai, ela é sua amante... - Insinuou, a voz aguda

ecoando no espaço exíguo.

- Como se sobrasse tempo para uma... - Atalhou, entre cansado e

enojado. Teria de fingir outra vez? Imediatamente, sentiu-se

desprezível, enquanto a mão livre investigava, roçando com casualidade

estudada pelas coxas da esposa.

Como se fosse programada para isso, a expressão relaxou-se, com um

sorriso escorregando dos lábios para a tarde que se despedia.

- Ora, por favor... Márcio, estamos no trânsito!

- Eu precisaria de uma amante, podendo fazer essas coisas com você?

- Perguntou, colocando na mente imagens de sua única amante, em todos

aqueles anos de casamento.

- Isto não está certo... - Replicou a esposa, com um ar de estudada

timidez.

Por algum motivo, aquilo foi demais. Sentiu que não sobraria sequer

o autorrespeito indispensável para continuar com uma vida saldável, se

fizesse aquilo novamente. Afastou a mão, em um átimo. Os olhos,

melífluos a custa de evocações mentais, agora fizeram-se desafiadores e

intensos. As mãos crisparam-se sobre o volante. A testa franzida,

a cabeça levantada, olhando a mulher de cima para baixo,

detestando-a no preciso momento em que alisava o cabelo escovado, as

unhas reluzentes captando a luz, por um segundo.

- Não, não está. Não está certo eu precisar te seduzir o tempo todo,

para ter a esperança de uma noite a salvo do inferno emocional em que

você insiste que vivamos. Você decidiu que eu tenho uma amante, e, mesmo

sem a menor prova atestando o fato, acha lícito me infernizar sempre que

pode. Pelo amor de Deus, não tem menina nenhuma!

- Ah, não? Ela anda te seguindo! - Respondeu ela, o tom de voz bem

mais alto que antes, agudo, ferindo-lhe os ouvidos, penetrando-lhe no

cérebro.

- Você está louca! Só vocÊ vê essa menina!

- Não estou louca; só não sou uma idiota! Tem todos os sinais! -

Agora, sua expressão estava furiosa, os olhos gestando lágrimas que em

breve cairiam. As mãos amarrotavam a bolsa de pano, torcendo-a e

retorcendo-a, enquanto o crânio balançava-se de um lado para outro, na

medida em que ela falava, atrapalhando gradativamente o penteado.

- Agora vai dizer que a menina tem cara de que é minha amante... -

Disse, decididamente, com o tom superior que ela detestava, a

ironia dando voz a seu desdém.

- Não? Ligam lá pra casa todo dia e desligam...

- E daí?

- Isso é coisa de amante.

- Não. É coisa de desocupado. Mais provável ser coisa de quem não

tem um amante. Ao menos, não um que dê-lhe ocupação suficiente.

Por detrás das lágrimas, ela esforçava-se para argumentar:

- por que uma mulher ligaria e desligaria?Pra ouvir a minha voz? Pra

ouvir a voz da Morena?

- Pode ser tudo isso ou qualquer outra coisa. Pode ser porque nosso número é desagradavelmente parecido

com um número que ela nunca memoriza nem se dá ao trabalho de anotar em

lugar próximo do telefone.

- Como você soube que é "ela"?

- Você estaria tão irritada se um homem ligasse e desligasse, sem

falar nada? Pelo amor de Deus, você que decidiu que a pessoa que liga e

desliga sem dizer nada é a mesma que, segundo você também estabeleceu,

está me seguindo por ser minha amante.

- Mas eu não disse que é uma mulher! Meu Deus, Márcio, você tem

mesmo uma amante! - Concluiu, positivamente chorando, as unhas

encontrando um ponto de fissura na alça da bolsa e investindo contra

ela,

como se isso pudesse aliviar todos os seus problemas.

- E agora você está indecisa entre a autopiedade e o orgulho

ferido... Eu tenho mesmo que passar por isso?

Ao chegar em casa e descer do carro, Maria Cecília tinha desfeito

todo o trabalho artesanal que compunha a alça da bolsa que carregava.

...



Sentados à mesa, percebiam vagamente que a filha lhes contava

qualquer coisa.

- Então eu disse para ela não ligar mais. Ela acha o quê? Que eu

tenho a obrigação de fazer isso? O que você acha, pai?

Ele olhou-a, apalermado. Seu pensamento estivera posicionado em

algum ponto, quinze anos atrás. Olhou para a mulher, num pedido mudo de

auxílio. Ela não captou, mas morena, sim.

- Você nem ouviu! - Disse, soando magoada.

- Claro que ouvi, minha filha. Você queria saber minha opinião sobre

o Gustavo te ligar.

- Gustavo já era, já foi faz duas semanas! Eu estava falando da Bia!

- Você está apaixonada pela Bia? - perguntou a esposa, mesclando a

surpresa forçada com um pouco de sarcasmo.

A garota levantou-se, irritada, batendo com força o garfo no prato.

Não olhou para trás. Saiu da sala quase correndo. Ouviram a porta do

quarto bater.

- Olha aqui, menina, não bata a porta desse jeito! - Exigiu Maria

Cecília, levantando-se. - Foi essa a educação que eu te dei?

Ato contínuo, foi postar-se, irritada, diante da porta trancada, de

onde começou a vomitar sua indignação, derramando-a para a fechadura.

Uma do lado de dentro, outra do lado de fora, trocaram insultos por

quase uma hora, enquanto Márcio voltava a mente para os fatos do

passado.

De fato, houvera uma amante muitos, muitos anos atrás. Uma garota

jovem, mais jovem que o recomendável, com idade para ser sua filha,

mesmo àquela época.

Sempre fora professor e sempre sentira-se atraído por suas alunas.

Gostava da afeição fácil, da divinização inconseqüente. Gostava de saber

que era o alvo dos seus pensamentos secretos, que lhes despertava, desde

a ternura mais cândida, até desejos que elas jamais ousariam confessar.

Sempre soubera disso, mas mantivera-se afastado. Gostava das alunas -

achava-as bonitas - mas gostava da sua esposa e de ser uma espécie de

alvo inatingível, para suas admiradoras. Nele a satisfação estava mais

em encantar, que na consumação, propriamente dita.

Mas um dia, houve uma garota extrovertida demais e tímida de menos;

houve uma excursão e vinho escondido, vinho mais que o que seria

conveniente; mais tarde, os dois estavam extrovertidos demais. Na semana

seguinte, ele pedira demissão e nunca mais se permitira tamanho

desvario, fosse a garota em questão sua aluna ou não.

Quando voltara para a casa, Maria Cecília veio com a idéia de que

ele teria uma amante. Negou. Não admitiria, de jeito nenhum. Ela estava

grávida de Morena, por que a importunar? Além disso, ele gostava da

esposa e queria muito a criança por vir. Por que arriscar tudo, em nome

de uma aventura que fora mais do vinho que do espírito?

Mas, por algum motivo, ela não acreditou. Por Deus, não havia

indício nenhum, mas ela não acreditou. E, desde então, qualquer uma

poderia ser a amante pressentida.

Isso, claro, afetou o casamento e, logicamente, respingou na criação

da filha. Com os anos, ele sentia-se exausto, só de imaginar outra briga

daquelas. E agora, quando mãe e filha choravam diante da porta trancada,

ele perguntava-se o que podia ser feito.





***



Eu só o vi aquela vez e percebi tudo. A coisa toda foi mais sentida

que sabida. Fico me perguntando por quanto tempo vou suportar essa

situação. Não pode ser assim para sempre. Até pode. Minha mãe ficaria

louca se soubesse.

Nos últimos anos, pressionei com insistência. Quem é ele? Não tem

nem uma foto? Como foi? Vocês foram casados? Passei a idealizar e

dividir com ela todas as minhas fantasias. Seria um médico? Os dois

poderiam ter se apaixonado. Quem sabe ela tivera um acidente e ele a

socorreu e, então, não sei, algo como o que eu tinha lido em "Sonho de

uma Noite de Verão". Ou, quem sabe, um advogado? Sim, ele defendera

algum interesse da família, ou, vai ver, vira-se envolvido em uma

briga de trânsito e ela, por algum motivo misterioso, acabara por

defendê-lo, revelando sua vocação oculta e conquistando a admiração do

causídico. A admiração é um passo para o amor, ainda mais se for uma

admiração inesperada.

Cogitei do médico estar em missão em um daqueles países em guerra e

do advogado estar empenhado em construir um patrimônio no exterior, mas

minha mãe fazer segredo de tudo isso, por querer me surpreender com a

casa nos Estados Unidos.

- Nada disso. - Cuspira ela, um dia, irritada. - Foi só um

professor. Ele era meu professor. Um dia, bem, aconteceu, e ele foi tão

covarde, que nunca mais pisou na escola. Foi tudo.

Hoje fiquei atrás dela a manhã inteira. Queria contar o que tinha

acontecido e o que eu estava fazendo. Não consegui dizer nada.

Ela me olhava e eu ria. Ela acabou me mandando fazer algum serviço. Eu

fiz e só pensei no dia em que o vi pela primeira vez. Hoje eu não ia seguir ele. Pra quê? Já

sabia tudo. Só faltava descobrir o que fazer com tanto conhecimento.

Era mais fácil ficar só sonhando. Havia risco em contar para ele

tudo. Podia quebrar o encanto. Ele podia nunca mais querer saber de mim.



***



- Eu poderia falar com o professor Márcio, por favor?

- Você é aluna dele?

- ... Sou. - Mentiu, porque seria mais plausível que uma aluna

desejasse falar-lhe.

- O que quer que tenha pra falar com ele, fale na escola. Em casa,

ele tem mais o que fazer.

- Mas eu...

Apenas o sinal de ocupado lhe respondeu.



...





- Era só o que faltava! Uma aluna sua ligando pra cá. Pra que você

deu o telefone daqui pra uma aluna, Márcio? - Exigiu saber Maria

Cecília, enquanto retornava para a mesa de jantar, intimorata.

- Eu não dei o telefone pra ninguém. - Respondeu-lhe o esposo, com

um ar entre cansado e enraivecido.

- Ah, não deu. Ela então adivinhou...

- Pode ter visto na lista telefônica, mamãe. - Completou Morena,

jogando nela todo o azedume pela briga da antevéspera.

- Olha aí... Você está ficando neurótica! A menina pode ter visto na

lista. - Confirmou, endereçando à pequena um sorriso cúmplice.

- Sei. Com todos os indícios, você quer que eu acredite que não tem

uma amante.

Ao som dessas palavras, Morena levantou-se, outra vez, correndo até

seu quarto. Bateu a porta com força, antes que as paredes se desfizessem

totalmente do eco dos seus pés contra o piso da sala. Entretanto, após

alguns breves segundos, abriu a porta um pouquinho, para ouvir a briga

que começava, lá na sala de jantar.

Encolhida atrás da porta, as lágrimas pingando teimosamente, Morena

a tudo ouvia, indecisa sobre o que pensar. Crescera ouvindo que o pai

tinha uma amante e absorvendo todos os seus argumentos em contrário. Um

dia, era criança, ainda, abordara a questão com a franqueza que a gente

só tem até os dez anos de idade.

- Você tem ou não uma amante? - Perguntara, enquanto ele estrelava

ovos para os dois.

A mãe estava na Universidade - ainda fazia universidade, na época -

e ela sabia que teriam tempo disponível.

- Não, Morena.

- Mas por que mamãe vive dizendo que tem?

- Porque ela acredita que tem.

- Mas é mentira?

- É. - Afirmara ele, desligando o fogo e retirando a frigideira da

boca fumegante. Morena ainda lembrava-se do barulho que o óleo fazia,

enquanto a panela era erguida.

- Então, por que você não diz isso para mamãe?

- É o que eu faço, Morena, todos os dias.

Agora, lá na sala, a briga continuava.

- A escolha é sua, Maria Cecília. Vai estragar outra vez a noite de

nós três por causa de uma amante imaginária?

- Não é imaginária! - proferiu ela, levantando-se da mesa,

empurrando a cadeira com o calcanhar.

- Pelo amor de Deus, é! Se eu tivesse uma amante, ela teria, na

melhor das hipóteses, meu telefone celular, não o telefone de casa.

- Você acha que eu sou uma idiota por...

- Pára, agora, você vai me escutar. - Impôs ele, também de pé, as

duas mãos firmemente plantadas nos ombros magros da outra.

- Vai fazer escândalo na frente da Morena?

- Ah, não, a noite é sua. - Disse, o tom abaixando, tornando-se

perigoso. - Se você tem o direito de dizer esses absurdos na frente da menina,

eu tenho o direito de dar minha resposta. Continuando, se eu tivesse uma

amante, seria mais inteligente lhe dar meu telefone celular; se eu

tivesse uma amante, ela não precisaria me seguir, porque já se

encontraria comigo; se eu tivesse uma amante, acredite em mim, eu jamais

seria tão primário. Em boa lógica, se você for bastante imaginativa,

poderá supor que a garota que você viu no trânsito e na escola está me

seguindo, e que é ela quem liga e desliga, aqui para casa. Nesse caso, o

mais provável é que ela esteja apaixonada por mim, por isso essa

aproximação pela metade. Quem já tem o que quer, não usa desses

artifícios.

Ao som daquelas palavras, Morena tornou a fechar a porta. Na ponta

dos pés, como se pudesse desencadear qualquer cataclismo por se fazer

ouvir, ela foi até a cama. Deitou-se sem retirar os sapatos e

encolheu-se, em posição fetal.

O telefone tocou. Ela ouviu, pela extensão que ficava em seu quarto.

Antes que ele alertasse os litigantes lá na sala, ela atendeu.

- Alô - Fez, colocando na interjeição uma miríade de perguntas.

A outra deve ter encontrado tanta tristeza por trás da voz, que não

desligou. Silêncio. Respiração. O despertador na mesinha do

quarto de Morena tiquitaqueava.

- Você é a aluna que ligou aqui pra casa? - Arriscou, sem esperança

de ouvir resposta.

- Acho que sim - Fez-se ouvir a voz. Era insegura como a dela,

instável, quase pueril.

- Ah... Você quer falar com o meu pai?

- Não, eu... Estava com uma dúvida, mas já... Resolvi.

- Bom pra você, então.

- É. Tchau.

- Tchau. - Fez a garota, ouvindo o sinal de ocupado.

Colocou o telefone no gancho e secou os olhos.



***



Chorei a noite toda. Acordei com o olho vermelho. A mãe quis saber o

que era. Nunca eu ia dizer. Ela não podia saber assim. Fui pra escola e

lembrei de quando o vi chegar pela primeira vez. Fiquei tão

impressionada... Só foi uma vez. Estava substituindo outro professor.

Só foi uma hora e foi suficiente. Eu soube de tudo. Vi tudo em um

segundo. Como dizer para ele que eu sempre o esperei? Como falar que eu

o imaginava entrando pela nossa porta, em cada noite de natal? Que

esperara um cartão, em todos os dias de meu aniversário? Como fazer-lhe

todas as perguntas que eu queria ali, com todas aquelas pessoas olhando?

Eu não queria saber do passado, como tinha sido, como tinha deixado de

ser. Queria saber do presente. Ele gostara de crianças? Teria gostado de

mim? Poderia gostar de mim?



***



Ela decidira chegar mais cedo. Há anos que ele começava casos e

parava, começava e parava, quando bem entendia. Bem, daquela vez, seria

diferente: ela daria o basta, não ele. Quem sabe, se ele a visse

intervindo de forma tão direta em lugar de simplesmente assistir,

passasse a ter-lhe mais respeito?

Sentia-se aviltada por ele, por aquelas traições sucessivas. Ela não

tinha provas, era verdade, mas as sentia nas virações do ar, no sangue,

na própria pele dele. Sentia-se aviltada pela traição e pior não ser

capaz de divorciar-se. Transferia suas razões para a filha, mas não era

verdade. Gostava de saber que só ela o tinha de direito. Mas não parava

por aí: gostava quando estavam juntos, da forma como ele a conduzia à

patamares indescritíveis de volúpia e sensações.

Naquele momento, deixou que toda a raiva por si mesma se revelasse

nas palavras que disse à garota de cabelo despenteado que estava na sua

frente.

- Oi. Eu sabia que você estaria aí, na porta. Toda segunda você vem. Pensa

que eu não percebi que você está de olho no meu marido?

Os olhos da outra arregalaram-se, com um pasmo que quase pareceu-lhe

sincero.

- Eu não...

- Pensa que eu não sei que você liga pra minha casa, que você segue

meu marido quando ele sai do trabalho? Uma menininha novinha como

você... Deveria se dar ao respeito... - E, ao falar com ela,

parecia-lhe estar vingando-se de todas que a precederam.

- A senhora está pensando que... - Seu rosto era vívida confusão, a

expressão espelhando vergonha e horror. A voz saía-lhe agora em um

murmúrio tenso e consternado.

- Em que série você está?

- Sétima...

- Não minta pra mim!!! Eu sei que você é aluna dele e que ele dá

aula em cursinho.

- Mas eu não sou aluna dele. Eu...

Márcio viu as duas metros antes da porta, bem como o ajuntamento

crescente de alunos. A voz alteada da esposa, o tom assustado e quase

inaudível da outra. Pela primeira vez, pôde olhar a menina. No meio das

outras alunas, podia passar-se por apenas mais uma, mas, agora, com a

esposa indicando qual era, podia olhá-la, ao tempo em que se aproximava.

Era jovem demais para ser sua aluna. O rosto delicado, decididamente

infantil. Os cabelos escapando de um rabo de cavalo que parecia ter sido

feito no começo do dia, as sobrancelhas muito finas, o nariz pequeno, a

boca delicada, as bochechas cintilante de lágrimas.

- Maria Cecília, o que é isso? - Perguntou, assim que juntou-se às

duas. A mão pousou, instintivamente, nos ombros da menina.

- Estava proporcionando um pouco de educação doméstica a essa menina.

- Educação? Meu Deus, o que você está fazendo?

- Eu quero saber onde a gente se perdeu, Márcio. Em que momento nós

decaímos tanto, que você se sentiu atraído por uma menina que bem podia

ser amiga da sua filha! - Essas palavras foram gritadas, acompanhadas

por uma torrente de lágrimas.

Em redor, alunos e professores formavam um círculo mais ou menos

delineado, o silêncio rodeando-os como uma entidade viva.

- Agora chega. Maria Cecília, você precisa de tratamento. Entra no

carro e vá pra casa.

- Sem você?

- Sim. Agora sou eu que quero tirar essa história a limpo...

- Hipócrita. Pensa que eu vou acreditar que...

- Por favor, mantenha a boca fechada, para eu não ficar ainda com

mais raiva de você. Se queria chamar a atenção, conseguiu: há cerca de

quinze alunos meus olhando para cá, mais alguns companheiros de

serviço, caso ainda não tenha reparado.

Portanto, entre no carro e vá pra casa.

- E deixo você de conversinha com essa...

- Maria Cecília... Ei, espera!

Por um motivo que jamais soube explicar, a garota desvencilhou-se

dos dedos dele e saiu correndo. Atravessou o círculo de expectadores

que, surpresos, sequer tiveram tempo de esboçar um gesto que a pudesse

deter. Com a agilidade triplicada pelo medo e pela vergonha, saltou

sobre a bicicleta, pegando o caminho para casa.

- Vai correr atrás dela, agora? - Desafiou a mulher, a voz mesclada

de triunfo e desafio.

- Entra no carro. - Decretou, o tom pouco acima de um murmúrio.

- Pra você ir correndo atrás dela?

- Não a pegaria, de qualquer modo. Ela está em uma bicicleta e eu

estou a pé. De mais a mais, caso não tenha se dado conta, você está segurando as chaves do carro. Venha, vamos os dois para casa.









***



Corri muito. Nem olhava bem por onde corria.

Cheguei em casa e varei o portão. Não via nada. Parecia

ainda ver ela gritando aquelas coisas e as pessoas se aproximando para

ouvir. Nem tinha forças pra chorar. Então ele chegou e toda falta que

ele nunca fez pareceu vir a meu encontro. Era como se tudo brotasse dos

bueiros e do asfalto. Ele estava lá: sonho real na minha frente; e ela

entendendo tudo errado. Ele me olhando. Um segundo imenso. Era a

primeira vez que ele olhava de verdade para mim. O toque no meu ombro,

estranhamente protetor. Quanta coisa eu quis

dizer! Mas só sabia chorar. Tanta vergonha... Todas aquelas pessoas

olhando...

Talvez ela fosse embora e ele falasse comigo. Mas eu não podia

esperar. Tive medo de lhe dizer um monte de besteira. Agora sei que

jamais terei coragem de procurá-lo. Agora ele tinha outra família; uma

família que eu poderia estragar. Não podia correr esse risco nunca.

Agora eu sei que passará muito tempo até que eu tenha coragem de

procurá-lo e chamá-lo de "pai". Então, quando e se finalmente eu o

fizer,

pode ser que eu ouça dele muito

mais que um alô. Pode ser que ele me reconheça como eu o reconheci. Pode

ser que ele me chame de filha.

Nenhum comentário:

Postar um comentário