Dois lados

Quão levianos são os julgamentos feitos em torno da personalidade de um
homem! De mim, discreto e cioso, dizem viciado; austero e sensato,
chamam-me imaginativo, quase louco. Todos superficiais demais para
entenderem que não sou uma coisa nem outra.
Minha mulher pela terceira vez me chama. São duas e meia da manhã e
Jogo xadrez pela Internet. Nessa noite, eu, que sou bom, sinto-me invencível.
Lanço um desafio, que é prontamente aceito. Os olhos fitos no
tabuleiro, vejo meu novo adversário jogar. NO quinto lance, penso que ele é tão bom
quanto eu; no décimo primeiro, admito-lhe certa superioridade; no décimo
quarto, penso que seja
invencível; no décimo sétimo, a partida está em suas mãos e eu cogito
seriamente abandonar o jogo ao qual fielmente me dediquei todos os
dias, desde a primavera longínqua dos meus quinze anos. "Deve ser um
grande mestre disfarsado", penso eu, recolhendo os restos mortais da
minha empáfia entre dois peões capturados.
De repente, um hiato: as jogadas ritmadas, quase automáticas, param
de chegar. Fixo-me nos segundos desmaiando sobre a tela; nada dele.
Começo a ficar preocupado quando suas jogadas prosseguem.
Entretanto, embora persistam as linhas gerais que lhe caracterizam o
estilo, a genialidade perece junto com o
tempo desperdiçado. Lance a lance, desfaz meu companheiro o brilhante
empenho das investidas pregressas. Parece mesmo que a mediocridade
encharca suas veias, toldando-lhe o raciocínio e nivelando-o aos
capivaras mais empedernidos.

A empatia envolve-me, inexorável. Que terá perturbado tão
fundamente meu adversário, guindado automaticamente à condição de ente
dileto ante a desventura que provavelmente lhe acomete?
Relembro minha esposa, surgida a pouco no umbral da porta do
escritório. Estava linda, como lhe é habitual. Vestes transparentes,
nitidamente a espera de que eu concluísse minhas partidas para envolvê-la
com meu amor. Terá meu companheiro a dádiva de desfrutar de tal raridade
na intimidade doméstica? Temo que não. Talvez estivesse ele a jogar para
aliviar-se da espera pela mulher que tardava a voltar à casa. Talvez
estivesse ela em bares, ladeada por companhias menos dignas; talvez a
pausa repentina tenha se dado porque aquela mesma mulher, dissoluta e
infiel, ligara para casa, perfeitamente embriagada, dando a saber ao
brilhante e incompreendido marido três realidades que o aniquilaram
completamente,
a saber:
1 - Ela comunicava-lhe que saía de casa.
2 - Fazia-o por não poder mais negacear seu amor por Josefina, uma
moça fantástica que conhecera nas aulas de equitação.
3 - Josefina, a propósito, estava grávida. Fizera inseminação
artificial afim de que gerassem frutos seu arrebatado e pungente amor.

Tão perdido estou em tais elucubrações, que me espanto ao ver que
meu querido amigo deixou o tempo cair. Os pontos perdidos no seu rating
dóem em mim. Lágrimas grossas enchem-me os olhos, ao ponto em que
uma necessidade extrema de aproximação humana me envolve.
Nunca me dirijo a um jogador. São adversários, nada mais.
Entretanto, hoje é diferente. Acesso o campo de mensagens e
indago-lhe se está tudo bem. Sua resposta é uma desconexão
instantânea. Apavorado, estremeço: estará ele a um passo do suicídio?

Através do retrato

As vozes ficaram mais distantes depois que ele fechou a porta.
Não queria ouvir e, ainda assim, distinguia o contexto por
detrásda madeira, não preparada para esses revezes.
Na escuridão do quarto fechado, Telmo ouvia e tremia, esperando que
seu nome não fosse sitado, esperando não ser o culpado,esperando não
precisar serjulgado também.
Dentro de poucos instantes, porém, o instrumento saía da caixa.
Duas, três notas preliminares, e todas as outras que estavam
encarceradas fugiram de seu peito, desaguando em cascatas ritimadas
pelas cordas suaves e obedientes. A música deslizou assim para o quarto,
alheando-o da discussão lá fora, do mundo que ruía sem jamais ter
conhecido a solidez. As lágrimas escorreram em determinado ponto, mas ele
não se importou. Abraçando-o como a solicitar consolo, derramou sobre o
instrumento dócil toda sua confusão, toda sua doçura, toda sua urgência
de carinho não satisfeito, de ambiente adequado ao florescimento que
sobrevivia apenas nas suas canções.
Ao fim, exausto, pegou do caderno de pauta e escreveu freneticamente.
As escalas por fim o redimiram e o levaram até o céu, suspenso em um
universo de notas perfeitas, harmonias diáfanas e sonhos de abranger
todo o mundo com a suavidade dos tons.
Lá fora, porém, o Universo continuava inconsciente do que se passava no
seu quarto fechado. Os soluços da mulher sessaram abruptamente e sobre
eles pairou um silÊncio congelado . Em seguida, passos vibraram
sobre os degraus, os pés aproximando-se do seu santuário. O caderno de
pauta aberto, as mãos hábeis surpreendidas no meio deum acorde
perfeito, quando a luz de fora foi finalmente revelada.
- Não, não precisa parar, filho. - Disse o pai à soleira, suado e
trêmulo, segurando uma máquina digital e um tripé .
Organizando os objetos que trazia com ele, ajustou
o timer e aproximou-se do garoto que, tentando fugir à realidade, seguia
executando a canção que compusera.

O flash vibrou e os capturou aos dois. A Máquina foi retirada por
seu dono, enquanto os pés que o trouxeram rumavam para baixo.
No quarto, Telmo continuou suspenso em seu mundo, certo de que, como
no passado, ele o protegeria do medo e da desilusão. Antes desse,
enfrentara vários outros estágios, inclusive o da rebeldia, da
intervensão inútil, do ódio indiscriminado. Agora, porém, após o
décimo quinto aniversário, sentia-se mais apaziguado, mais preso do
desejo de não saber que de qualquer outro impulso.
Adormeceu, pois, sobre seu refúgio, sendo acordado só mais tarde pelos
raios que entravam-lhe pela janela aberta. O frio despertou-o como
poucas coisas poderiam fazê-lo. A casa, porém, não estava quieta.
Apenas depois percebeu que fora um grito, e não o Sol que o acordara.
Rastejando para fora do quarto, encontrou-os todos na sala: a
empregada, o vizinho e o corpo mutilado da mãe.
O terror foi tanto que lhe obstruiu as lágrimas. Parado no cômodo
agitado, tal foi seu silêncio que tardaram para adivinhar sua presença.
Quando tal aconteceu, um desconhecido segurava a máquina que
estivera sobre o pedestal. Na tela pequena, estava a foto de pai e
filho, capturados naquele instante de intimidade fabricada.
Peritos examinaram data e hora da fotografia. Era estranhamente
parecida com o horário aproximado do assassinato. Afinal, que significava
isso? Seria seu companheiro inocente ou culpado?
De pé no ambiente agora repleto, espantava-se de ninguém ter lhe
dirigido qualquer questão. No silêncio de sua mente treinada pela música
para perceber nuances, telmo lembrou-se de ter visto a culpa nos olhos
do pai, a mesma culpa que o fitava através do retrato, olhos que fingiam
compreender sua música, sem jamais terem tentado dela se aproximar.
"Talvez ela também o tivesse salvado" - congecturou o garoto, antes
de sentir-se arrastado para a escuridão.

Fim de semana

- Eu disse que não era pra você vir - Disse ela, através do
interfone, a voz irritada e enlatada apoiando-se na proteção contra
chuva do aparelho.
- Abre a porta, Aurélia. Vamos conversar. - Pediu ele, entre surpreso
e agastado.
- Eu não tenho nada para conversar com você. - Proferiu,
demonstrando sua resolução ao depositar o aparelho no suporte, junto à
parede da cozinha.
Mateus continuou de pé, sob o Sol alegre de domingo, olhando
fixamente a casa silenciosa, como se dela pudesse vir alguma idéia ou
explicação.
Em um retrospecto automático, os lances essenciais dos últimos anos
invadiram sua mente, com a intensidade e a cor dos respectivos
momentos.
Depois de seis meses de paixão, falaram em casamento, e a idéia foi
bem acolhida por absolutamente todos os interessados. O matrimônio
realizou-se em um clube concorrido, e não faltou nem alegria, nem
auspícios promissores. De fato, o casal parecia navegar em águas
tranqüilas, mesmo quando, três meses após o matrimônio, anunciou-se a
chegada de um bebê.
Outra vez, tudo foi perfeito, ao menos, até o nascimento. Aurélia
mostrou-se uma mãe atenciosa. Atenciosa até demais. Tão atenciosa, que Mateus
desapareceu. Ao menos, no que lhe dizia respeito.
Passava dias inteiros sem lhe dirigir a palavra, praticamente, tão
absorta estava nos cuidados com o bebê.
Ele dizia a si mesmo para ser compreensivo, afinal, era uma
mudança e tanto na vida dos dois. Esperava, sensatamente, que ela
dividisse melhor sua atenção na medida em que o bebê crescesse. Bem, não
foi o que aconteceu. Não nos próximos seis anos. Na verdade, Aurélia
mostrara-se nitidamente desagradada, sempre que ele buscava qualquer
proximidade com ela e com a menina. Claro, talvez ele devesse estar
esperando até aquela hora, e então provavelmente estivesse dentro da
casa, não fora, plantado diante de umas paredes indiferentes. Contudo,
aparecera Mônica.
A jovem viera estagiar na firma em que ele trabalhava. E o que ela
tinha de mais? Nada; apenas deu-lhe atenção, riu das suas piadas de vez
em quando, reparava se ele estava bem ou não. Para ele era óbvio que
ela estava apaixonada, e uma verdadeira tragédia o fato de ser
correspondida.
Procurou coragem e a encontrou. Premiu outra vez a campainha.
Silêncio.
Nunca falaram nos sentimentos de ambos, mas ele não tinha nenhum motivo realmente
bom para rejeitar o convite de ir ao aniversário de dois anos da filha
da moça, e, realmente, não pareceu-lhe haver nada de mais em ajudá-la a
limpar a sujeira, depois que todos foram embora.
No outro final de semana, os três foram para a praia e, pela
primeira vez, ele teve a oportunidade de brincar com uma garotinha, sem
restrições.
Assim foi por quatro meses, até que ele
percebeu que Mônica e sua menina eram mais familiares a ele que sua
mulher e a própria filha.
Não que não amasse a criança. Amava. Mas a atitude da mãe sempre o
mantivera distante, chegando mesmo a obstar qualquer contato mais
pessoal.
O divórcio tornou-se imperioso. Ele talvez quisesse fazer o caminho
de volta, mas, na vida de Aurélia, simplesmente não havia lugar para
um marido.
A separação correu esplendidamente, até o ponto em que mencionaram
as visitas. Para Aurélia, a questão era simples: nada de visitas. Ao
renunciar a ela, ele renunciava à filha. Pacote completo. Acontece que,
além da vontade férrea, ela não tinha nenhum outro motivo para
justificar sua imposição, de modo que as visitas semanais eram
um fato que ela detestava, mas com o qual era obrigada a conviver.
Assim, todos os finais de semana, a garotinha estava esperando-o na
porta, vestidinho passado e com um ar solene. A relação com ela nunca
fora melhor. Pela primeira vez desde seu nascimento, eles tinham a
oportunidade de realmente interagir, o que era motivo de muito
contentamento para ambos. Os dias de domingo eram aguardados com
ansiedade pelos dois. E era para mais um daqueles dias que ele estava
ali, o Sol magnífico convidando-os para a praia, para mil e uma
alegrias. Mas, por um motivo misterioso, Aurélia decidira que ele não
podia levar a menina.
Tocou outra vez. Nada. Uma segunda vez. Demorou mais em retirar o

dedo.
- O que é que você quer? - Perguntou ela, irritada, a voz alterada
agora ultrapassando a proteção contra chuva.
- Aurélia, não faz assim. Abre a porta, vamos conversar...
- Não temos nada para conversar com você.
- Meu Deus do céu, Aurélia, por que fazer is... - O aparelho sendo
lançado contra o suporte interrompeu-lhe o argumento.
Primiu o dedo, outra vez. Ela atendeu com um palavrão.
- VocÊ está sendo ridícula, Aurélia. Eu tenho a chave, mas não
queria entrar contra sua vontade.
- Então não entre! - Concluiu, interrompendo a comunicação uma vez
mais.
Após pequena hesitação, ele voltou ao carro e retirou a chave do
porta-luvas. Com os passos retornando à frente da casa, ouviu gritos e
choros confusos, partidos de dentro. Para ele, foi o incentivo que
faltava.
Girou a chave e adentrou pela garagem, alcançando o quintal , a
varanda e a porta da sala, que já estava aberta.

A cena não precisava de explicações. Marcela era empurrada em
direção ao seu quarto, enquanto mãe e filha gritavam, alteradas.
- Entra e fica quieta. - Ordenava Aurélia, o rosto vermelho pela
cólera, fios esparsos do cabelo ruivo escapando do elástico.
- Eu não vou. Eu quero ir com meu pai. - Contrapunha a menina,
enquanto as lágrimas rolavam, desoladas, pelo rostinho miúdo.
Sem ainda ter divisado o ex-marido, Aurélia resolveu a questão,
agarrando a garotinha por sob as axilas e carregando-a para o
quarto, enquanto ela gritava e chorava, as palavras sendo amassadas pela
torrente de lágrimas:
- Hoje é dia do meu pai. Eu quero ficar com meu pai. - Repetia ela,
em uma ladainha impotente.
Mesmo a porta trancada, não pôde abafar-lhe os gritos por completo.
Quando a mãe deu às costas ao quarto da filha e voltou pelo corredor,
encontrou Mateus, poucos metros diante dela.
- Eu disse que não queria que você entrasse. - Disse ela, num
sussurro tenso.
- Por que você está fazendo isso, Aurélia? - Perguntou, tristeza
trocando de lugar com a determinação.
- Eu não tenho que te dar satisfação. Não sou mais sua mulher.
- Está certo. Só que Marcela ainda é minha filha. Sempre vai ser. -
Arriscou, a cabeça erguida contra ela, confuso, mas também aviltado.
- Escute, Mateus, por que você não esquece a menina? Pelo amor de
Deus, mesmo sua namoradinha tem uma filha. Deixe Marcela para mim. Ela é
tudo que me resta.
- Você fala como se a menina fosse uma cristaleira, uma coleção de
discos... Ela é uma pessoa, e precisa de pai e mãe.
- Ela não precisa de um pai como você. Ela precisa só de mim.-
Concluiu Aurélia, os lábios apertados, as lágrimas grossas abrindo caminho por seus olhos
castanhos.
- Como assim, um pai como eu? Eu não sou horrível.
- Não. - Concedeu ela, irônica, tentando, debilmente, enxugar o
rosto com o dorso da mão. - Você nos abandonou. Você foi embora, foi
indo, foi indo e nos abandonou.
- E você fez qualquer coisa para me manter por perto? - Perquiriu
ele, a voz gradativamente alteando-se.
- Você que se afastava da gente, você que nos ignorava, e eu que
tinha que correr atrás? - Desafiava.
- Bem, só estava em questão o seu casamento.
- Estava em questão a felicidade da minha filha, e ela parecia muito
bem sem você.
- Ela não me pareceu bem, agora. - Argumentou, irritado.
- Aquilo foi um capricho. Passa logo. Ela está com a mania de ser
intransigente.
- É um capricho querer ficar perto do pai? - Indagou, as forças
divididas entre continuar apelando para a razão da mulher e não
sacudi-la pelos ombros.
- Ela não precisa de pai. Eu nunca tive um, e fui muito feliz assim,
obrigada.
Mateus creu ver um vulto refletido no vidro da janela,
mas não deu atenção.
- Você pretende que isto se torne um hábito?
- Eu nunca disse que queria essas visitas.
Um lampejo de fúria genuína lambeu suas entranhas. Fechou os olhos, tentando conter a irritação. Em milésimos de
segundos, revisou todas as opções a seu dispor. Podia desacordar a
mulher e levar a filha dali, o que lhe traria problemas, caso Aurélia
continuasse com aquela idéia absurda; podia ameaçá-la de alguma coisa,
impor-se como homem, o que certamente angariaria os mesmos ônus da
primeira postura; chantagem emocional não costumava funcionar com quem
somente
enxergava as próprias penas.
Recapitular temporariamente pareceu-lhe a única alternativa válida,
embora fosse a menos desejável. Perguntou-se o que Marcela acharia de
tudo aquilo. Ficaria contra o pai? Pensaria que fora traída? Estaria
ela, na inocência do seu coração, esperando que ele a deixasse sair do
quarto e partilhar com ele um maravilhoso dia de Sol?
Pensou em procurá-la na escola, para conversar. Aurélia não
precisaria saber. Era o pai da menina, não era? Odiou-se por planejar
ver a própria filha escondido. Aquela atitude toda era tanto humilhante,
quanto inaceitável.
Sem, entretanto, encontrar melhor possibilidade para o momento,
dirigiu a mulher meia dúzia de expressões pertinentes e saiu porta a
fora, fechando o portão daquele lugar que há poucos meses julgara que seria seu
lar para sempre.
Ao aproximar-se do carro, notou um rostinho conhecido contra o vidro.
Abriu a porta, tendo quaisquer expressões retardadas por um
imperativo gesto que ordenava silêncio.
Os seus olhos encararam aquele rosto que era tão parecido e
diferente do seu. Uma mistura que, em um passado que não ia tão longe,
julgou ser aprova máxima da união e do amor.
- Vamos, papai! - Pediu a menina, com ar gravíssimo.

Conversa que não devia

Os dois sentados em um bar. Dez e meia da noite, mesas
separadas bastante para prover privacidade.
- Eu sempre soube tudo de você. - Disse Rita, alegre, depois de
expressar uma percepção sobre o marido que este acolheu.
- Nem tudo. - Contrapôs ele, o riso de antes ainda caindo pelos
cantos da boca suja de camarão.
- Ah, não? Então, diga uma coisa que eu não saiba. - Provocou, o dedo
espetado na direção dele, a expressão trocista, porém desafiadora.
- Rita, Rita... Temos já quinze anos de casado, e você acha que tem
algo que não saiba de mim?
- Mas foi você quem disse que eu não sabia tudo! Ora, vamos lá, o
que é que eu não sei?
- Você sabe tudo que há para saber.
Mais tarde, Rita não soube o que a alertou: se a pausa, se o tom.
- Mesmo? - Exigiu, olhos nos olhos, as mãos segurando a mesa.
Ele observou-a por um instante, aparentemente registrando a tensão
crescente pela primeira vez.
- Meu Deus, o que é isso? Pra que essa cara? Rita, pelo amor de
Deus, pára de criar confusão.
- Criar confusão? Depois de quinze anos de casado, existe algo que
eu não sei de você, e você ainda me diz isso, com essa cara?
- Sei lá se tem, meu Deus! Eu falei por falar. - Defendeu-se,
surpreso.
- Falou por falar? Falou por falar? Essas coisas a gente não fala
por falar. Ou é verdade, ou não é. - Teorizou, os olhos marejando-se de
pranto, os nós dos dedos tornando-se brancos pela intensidade com que
segurava a mesa.
- Nós nos conhecemos desde os doze anos. Estudamos juntos desde
então. Casamos e você sabe tudo sobre a minha vida. O que pode haver de
obscuro nisso?
- E eu é que vou saber? Eu vim pra cá propensa a criar caso? Vim?
Essa era para ser uma noite legal! Você que veio com essa história.
- Escute Rita, não há nada que você não saiba, mas, supondo que
haja...
- Há, eu sinto! - Exclamou ela, batendo o punho contra a mesa,
conseguindo que copos e garrafas tilintassem perigosamente.
- Supondo que haja... Não é concebível que tenhamos um pouco de vida
própria? Por exemplo, você não me diz o que fará com aquelas economias
que...
- Deixe minhas economias fora disso! - Exigiu em tom alto, obrigando
algumas cabeças a virar em sua direção.
- Meu Deus, calma! Não quero suas economias! Era só uma brincadeira de um segundo! - Tentou, ao mesmo tempo em
que procurava pedir, com gestos, a conta ao garsom que passava.
- Há coisas sobre as quais é proibido brincar, mesmo que seja por um
segundo. - Concluiu, secando os olhos e tentando recompor-se, enquanto,
intimamente, já tomara uma decisão.

***

O homem era daqueles que você vê na rua e não olha uma segunda vez.
Entretanto, é certo que, se chegasse a fazê-lo, surpreender-se-ia ao
comprovar que ele saberia mais coisas a seu respeito que você mesmo. Seu
apartamento era decorado com um estilo sóbrio, porém pessoal, tendo por
um de seus diferenciais a sala despida de quaisquer estofados,
repleta de almofadas vermelhas pelo chão.
Rita e o detetive Lúcio conversavam na cozinha, em um tom
completamente profissional. Ainda assim, ela desfrutava de certa
familiaridade, como se os olhos escondidos sob os óculos escuros lhe
inspirassem uma afinidade singular, como se a voz que se mantinha em um tom sempre
baixo, quase inaldível, despertasse em si confiança irrestrita.
- Então, o que quer que eu descubra a respeito de seu marido?
- Absolutamente tudo que eu não souber. - Respondeu Rita,
prontamente.
- Mas isso é bastante impreciso, a senhora há de convir.
- Impreciso? Não vejo porquê. Descubra o que puder, e vejamos quanto
eu sei.
- Devo convir que a senhora suspeita de traição? - Indagou ele,
olhando-a de uma forma que lhe soou distante demais.
- Pode ser. - Confirmou, cruzando e descruzando as pernas dentro da
calça preta e justa, o rosto voltado na direção da fruteira repleta de
frutas naturais.
- Quem sabe má conduta na vida financeira? - Sugeriu.
- É, pode ser, também.
O outro permitiu-se um suspiro contrafeito.
- Muito bem, já entendi. Entrego meu primeiro relatório na próxima
semana.
Disse isso e levantou-se, estendendo-lhe a mão. Ela também
ergueu-se, apressada, pondo em xeque a acertiva de sua empreitada. Muito
bem, supondo que não houvesse nada para ser descoberto? Ela se sentiria
uma neurótica ciumenta e perderia todas as suas economias. Como podia
ser assim, tão ridícula?
Pensou francamente em desistir de tudo, exigir seu dinheiro de
volta, alegando que tinha um distúrbio de personalidade ou uma irmã
gêmea - a desculpa não importava.
Todavia lembrou-se de que Clair, sua melhor amiga, descobriu que
estava sendo traída após consultar esse detetive e, veja bem, o esposo
dela era ninguém mais, ninguém menos que Marcelo, o estereótipo do
homem perfeito, o irresistível galã de novela definitivamente fora de
circulação, preso de amores por sua noiva eterna.
Claro que Rita sempre soubera de tudo, mas, quando Clair lhe
perguntara, preferira calar-se: jamais queria sobre si a
responsabilidade por um lar desfeito.
Então... Se ele pôde descobrir algo de errado no Marcelo, imagina no
Gustavo, seu marido?
Na primeira semana, nada inédito. Relaçõies familiares, o fato
de que ele estava procurando emprego há dois meses. O nome do banco em
que tinha conta, e até mesmo um estrato atualizado. Isso plantou na
cliente a certeza de que as relações dele eram incríveis; na segunda
semana, relatório medíocre. Seus melhores amigos de escola, junto com
seus respectivos endereços e ocupações. A cópia xerografada da sua
agenda junto com seus compromissos anotados, bem como a constatação da
hora, local e finalidade de cada um deles.
Rita estava encantada. Definitivamente, ele era melhor que Sherlock
Holmes.
Suas economias bastavam apenas para mais uma semana. O terceiro
informe, porém, foi melhor que todos os outros. Era um praticamente um
diário detalhado, apenas escrito em terceira pessoa. Possuía até
detalhes da vida conjugal dele, bem como uma série de ninharias que ela
jamais soubera, como, por exemplo, que ele praticara tiros, que era
alérgico a aves, que namorara e própria Clair, antes dela.
- Clair? - Saltou Rita, espantadíssima. - Mas como ele pôde? Ela
sempre foi minha melhor amiga?
- Bem, talvez seja o caso de perguntar, também, como ela pôde. -
Atalhou Lúcio, sorrindo.
- Como assim? Você vai defender ele, agora?
- Acho que você vem sendo realmente injusta com ele.
- O quê? - Exclamou Rita, ruborizando-se.
- É, de verdade! Veja bem, você, sem nenhuma prova concreta,
pagou-me para esquadrinhar a vida do homem...
- Pois é. - Concordou a mulher, empertigando-se, pondo-se de pé. - Paguei, e muito bem pago. Pensei que o pagamento incluísse
alguma privacidade.
- Sim, certo, mas eu realmente não acho justo que...
- Escute aqui, meu senhor, muito obrigada. Vou dizer para todas as
minhas amigas quão maravilhoso o senhor é. Agora, se não lhe devo mais
nada...
- Não, não se preocupe, está tudo acertado. - Garantiu,
acompanhando-a até a porta, fazendo um muchocho ao ser surpreendido com
o barulho causado pela força com que a mulher a fechou.
Em seguida, espreguiçou-se, observando seu reflexo através do
espelho do corredor da sala. Agilmente, retirou a peruca, revelando uns
cabelos pretos e bastos. A barba postiça escondia um rosto mais notável
que o que seu dono engendrara. A retirada dos calços nos sapatos
restaurou-lhe a altura a uma estatura inferior, portanto, mais
chamativa e um observador logo descobriria que a cor do paletó era
perfeita para dicimular um tecido adiposo extra.
Coçando o cabelo displicentemente, Gustavo pegou do envelope e
contou as notas. Em seguida, chamou:
- Clair, venha, querida. Preciso do telefone daquela transportadora.

23 Horas

24 Horas

23:45

Com o passar dos anos, Kátia aprendeu a reconhecer quando começava a
perder o controle. Invariavelmente sua voz descendia meia oitava e ela
deixava o estágio de amarfanhar uma ponta de pano qualquer para enrolar
e desenrolar uma mecha de cabelo no indicador. O ir e vir da mecha negra
erea o cronômetro do tempo que faltava até o descontrole final, algo que
poderia eclodir sob a forma de um acesso de fúria ou de lágrimas, o que,
de toda maneira, refletia a raiva exacerbada.
Bordejava aquele estado milítrofe há uns bons minutos, quando tudo
explodiu de uma vez só. Frases que jamais deveriam ser sequer
sussurradas, escaparam do seu peito. Soube que fora longe demais quando
os olhos de Eduardo se tornaram intensos, a indignação rutilando,
emprestando-lhe um brilho assustador ao influxo da luz pálida que vinha
do relógio digital.
O silêncio caiu entre eles, mas estava longe de ser misericordioso.
Pelo contrário, exibia todos os caracteres da calmaria que precede uma
temível tempestade, aquela que teria o poder de varrer tudo quanto
encontrasse a sua volta.
Ao cabo de alguns instantes ele falou, a voz baixa e controlada de
quem não deseja gritar.
- Eu quero o divórcio.
Kátia esperou. Nada mais. Parou de olhá-lo. os olhos castanhos
pousaram na geladeira. Ímãs de geladeira. Uma bruxa com uma vassoura.
Talvez tivessem comprado isso no primeiro ano de férias. Catálogo de
lanchonete, telefone de farmácia, propaganda do gás; uma lembrancinha
tosca que Júlia trouxera da escola, no ano anterior; uma ou duas fotos
de bebês lutavam para ter espaço entre artesanatos da Bahia, propagandas
de cerveja e uma infinidade de quinquilharias.
Assombrada, Kátia percebeu que havia uma história permeando cada um
daqueles objetos. Mais sério ainda: percebeu que cada uma daquelas
coisas fizera parte da sua história com Ed. Por que isso a
impressionava? Ao todo tinham sido quinze anos. Quinze anos
turbulentos, mas, indiscutivelmente , quinze anos.
- Você não pode estar falando sério. - Ela falou para a geladeira,
mas ainda assim, foi ele quem respondeu.
- O que temos de bom? Apenas fazemos mal um ao outro e depois...
Depois teve o que você disse... Isso sem contar com o Jair.
Colocou a mão sobre um bonequinho de gesso e começou a arrastá-lo
para baixo, para baixo, para baixo, empurrando, assim, todos os que
estavam antes dele. Um a um, os enfeites foram escorregando,
simultâneo às palavras de Kátia para a geladeira.
- Você não pode ter levado a sério isso. Foi uma viagem da empresa,
nós estávamos brigados. Talvez eu tenha bebido demais.
- Sem nenhuma dúvida eu já bebi demais - confessou, triste -, mas
nunca foi motivo para que eu tivesse outra mulher.
- Olha, Ed, desculpa, eu exagerei, eu posso...
- Já passou da meia-noite, Kátia. Dorme e depois a gente decide o
resto.


05:30

Kátia realmente tenta acordá-lo, mas ele parece estar disposto a fingir
um sono imperturbável eternamente. Pouco depois, completamente arrumada,
prepara o café da manhã. Só então acorda Júlia, que reluta em
sair da cama e precisa ser sacudida várias vezes.
Comem juntas em silêncio, enquanto a televisão, na cozinha, entre
ambas,
despeja as notícias da manhã.
Poucos minutos mais tarde, as duas caminham juntas, rumo à
parada de ônibus. Espera curta, chegada do transporte. Entram. Sentam-se
separadas. Descem bons minutos mais tarde. Despedem-se de forma
maquinal na
esquina da escola. Kátia pergunta-se como lhe contaria do divórcio. Por
algum motivo, sabe que a decisão do marido é irreversível. Censura-se
por Jair e muitas outras aventuras anteriores, ao tempo em que execra a
falta de compreensão do esposo. -
Chega à empresa e funde-se à pequena multidão de funcionários.
Assume seu posto e trabalha por toda a manhã, tentando vigorosamente
afastar um outro assunto da sua cabeça. Não adianta.
Na hora de almoço, renuncia a uma porcentagem dela para pegar um
ônibus e dar uma passadinha no laboratório. Retira o exame e abre-o,
expectante e assustada. Positivo. Suspira e enfia o papel na bolsa.
Entra no banheiro e chora.
Trabalha todo o resto da tarde. Pergunta-se se o filho é mesmo de Ed
e se ele também fará o mesmo questionamento.

19:15:
Está presa em um engarrafamento. O coletivo praticamente não se
mexe. Ignora se a mãe lembrou de buscar Júlia na escola.

21:00

Finalmente entra em casa. Ed ainda não voltou do serviço. Sua mãe a
espera na porta. Júlia está doente, precisa de remédio.
Kátia entra em casa e encontra a filha. Parece ainda menor que da
última vez que a observou bem. Os seus olhos são velhos, mas a aparência
denuncia menos que seus seis anos de vida. Um abraço no silêncio, o
exame se mexendo na bolsa, a menina enrolada em dois cobertores.
Sai outra vez, procurando uma farmácia. Fechada. Apenas poderá
dispôr de uma 24 horas. Uma drogaria aberta em tempo integral dista dois
ônibus dali.
Kátia abre a bolsa, pega a carteira, conta as notas, e finge não ver
o papel do exame sorrindo para ela.

21:45

Entra na farmácia. Apenas ela, um funcionário e outra compradora.
Kátia aproxima-se do balcão e pede o remédio ao vendedor indiferente,
simultâneo à entrada de dois potenciais consumidores no estabelecimento.
O remédio desliza da prateleira; dinheiro magro troca de mãos e um
tiro é dado para o alto.
Todos os olhos encontram uma arma, uma mão, um dos recém-chegados.
Nada demais, só outro assalto.
Kátia maquinalmente olha para fora, esperando um socorro miraculoso
e recebe como resposta apenas a luz distante de um poste.
Os rapazes se sentem insatisfeitos com o dinheiro disponível no
caixa. A frustração sobe-lhes em ondas espiraladas desde o fundo do
estômago. Retiram a bolsa de Kátia, não encontrando nada ali além do
dinheiro para o ônibus e cinco centavos referentes ao troco do remédio.
Voltam sua atenção para o medicamento na mão dela. O líquido desliza para o chão, caindo
em gotas grossas como lágrimas silenciosas, talvez as lágrimas que Kátia
desejara ter chorado aos pés da geladeira, quase 24 horas antes.
O funcionário não é descriminado. Chutes, agressão gratuita, um tiro
certeiro na cabeça. Aparentemente, sua carteira oferecia tanta
dificuldade quanto às magras posses da mulher.
Sob os olhares anônimos dos transeuntes ocasionais e apressados, a
farmácia foi pilhada, Kátia colocada em um canto, proibida de se mexer,
enquanto a mulher era empurrada para o banheiro, os passos trôpegos
como os da mãe de Júlia no encontro com Jair..
De relance, o papel do exame no chão.

23:00

Por algum motivo desconhecido, um carro da imprensa local aparece
nas imediações. Entrevistam os rapazes irritados, entrevistam Kátia.
Os policiais chegam para as negociações. Realmente, os consumidores em
potencial precisam ser apaziguados. Fazem exigências, ameaçam
explodir a farmácia.

23:40
Kátia pensa na febre da menina. Imagina se o jornalista enviará
um chamado urgente, para que alguém verifique a doença de Júlia. Por
algum motivo, duvida que a mãe possa se dedicar muito a isso, com
ela aparecendo na televisão. O exame olha para ela, agora pisoteado.
Tudo é rápido e sem remição, quase como sua explosão de fúria
na cozinha, noite passada. Decide pegar o exame: teme que algum curioso
o veja, por mais absurda que pareça a hipótese.
Um dos rapazes interpreta isso como reação ao assalto, fica ainda
mais nervoso e atira.
O exame, Júlia, Ed, Jair, as gotas grossas do remédio no chão: lágrimas
que ela não chorará jamais.

Nos braços do Cristo

Fiquei surpresa ao resgatar este conto, diretamente dos escombros do que sobreviveu ao ano de 2002. Podia ter sido pior.

Nos braços do Cristo

Sou secular. Vim de tão longe, que mal sei de onde saí. Da infância,
lembro-me de grandes pátios, uma vontade enorme de ir embora e muito,
muito trabalho. Lembro-me também da minha mãe, negra e bonita,
mexendo enormes taxos de doces no fogão a lenha. Depois, um padre me
ensinando a ler, fazendo o que ele dizia ser sua boa ação do ano.
Ao contrário dos que dividiam a senzala comigo, eu tinha pele,
cabelos e olhos claros, por causa daquilo que soube mais tarde chamar-se
infidelidade senhorial. Para ser mais exato e hirônico, chama-lo-hia
subjulgação ou, para ser mais cru ainda, estupro. Do ingenho enorme, a
melhor lembrança que guardo é da minha mãe. Foi meu primeiro e mais
verdadeiro amor, possivelmente porque era simples.
Anos mais tarde, fui vendido. A lembramça dos seus olhos secos,
acompanharam-me por todo esse tempo e, quando tornei-me vampiro,
foram esses mesmos olhos que me impediram de infrentar o Sol um milhar de
vezes, quando a eternidade parecia-me insuportável e fria de mais.
Alimentáva-me do sangue dos maus e tentava ser bom, não porque
fosse digno, mas porque assim corria menos riscos de desaparecer nas
mãos de algum inimigo. Além disso, havia um fato que já, já te conto.
Participei de muitos clãs durante os anos seguintes.
Estive nas campanhas da segunda guerra mundial, acompanhando todos
aqueles homens que lutavam sem sequer saber porquê. O problema dos
grandes sempre afoga os pequenos e isso eu compreendi desde cedo.
Meus conhecimentos do iluminismo, revolução francesa e guerras mundiais
embeveceriam quaisquer estudantes de história deste mundo. graças à
faculdade de transporte ultra rápida dos vampiros, eu pude presenciar a
alguns esses acontecimentos de perto, sem, contudo, ser de qualquer
utilidade. Predador um dia, predador para sempre, e deixe que
te diga que a eternidade é um tempo muito longo. Ao menos, costumava
ser. As coisas mudaram muito desde que conheci Talita.
Dizem que todo homem, por pior que seja, encontra-se, uma vez na
vida, frente a frente com a virtude.. Dizem mais: falam que essa virtude
apresenta-se-lhes em forma de mulher. Acredite: esta é uma história
verídica.
Ao longo dos anos, conheci muitas mulheres que deram-me o melhor ou
o pior de si, dependendo delas mesmas e das circunstancias. Entretanto,
nenhuma é tão especial e encantadora quanto a minha Talita.
Sua vida, seus quinze anos, estão muito aquém desse papo sério de
eternidade, senzalas, vampiros sugadores de sangue e cadáveres
dilasserados nos canais. Sua vida consiste em ajudar a mãe com o
jantar, ir à escola, telefonar às amigas, tentar recuperar uma nota
baixa, andar de patins aos finais de semana, e, claro, aproveitar os
encantos do seu primeiro namorado. É capaz de adivinhar quem é o
felizardo? Sou eu. Eu que, pela primeira vez, queria ser apenas um
adolescente espinhento que procurasse ganhar coragem para convidá-la a
dançar no baile da escola; eu que fico atordoado com a sua sensualidade,
que parece quadriplicar simplesmente com o fato de ela ignorá-la;
eu que me perco na cascata noturna que acaricia

seus ombros, uma cascata de fios perfeitos e muito macios, como um
halo de pureza a envolvê-la; eu que derreto-me ao som da sua voz alegre,
feminina e quase infantil; Eu que deixo meu espírito deslizar para
esferas alvas com a simplicidade delicada da sua voz; ela que, de tão
rosada, tão perfeita, meiga e singela, fez renascer o que havia de
melhor em mim.

Encontrei-a uma noite dessas. Seu ônibus havia atrazado e ela
estava tentando voltar a pé para casa. Eu, faminto, procurava alimento.
Vi-a. Pensei no seu sangue fluindo para mim, mas, ao aproximar-me, percebi
que seria incapaz de fazer-lhe mal. Contrariando meus instintos, decidi
protegê-la, ser um bom amigo, qualquer pessoa inofensiva que estivesse
sempre por perto para ajudá-la. Acompanhei-a até a casa e, em pouco
tempo, fiquei sabendo tudo a seu respeito. Encantou-me o mundo simples e
seguro que ela tinha, a sua bondade natural e a receptividade que tive
no seu coração. Poucos meses mais tarde, ela escreveu-me uma carta de
amor e começamos a namorar. Agora, finjo que sou um rapaz de vinte e
poucos anos, que faço universidade em outra cidade e apareço todas as
noites para namorá-la, no aconxego do seu lar.

Sei que essa situação não pode estender-se pela eternidade. Um dia,
quando ela estiver mais velha, pretendo contar-lhe tudo e, se ela não
me quiser mais, sairei do seu caminho tão rapidamente como entrei,
agradecido por tudo de bom, puro e sincero que partilhamos juntos.

Nesse momento, estou indo vê-la. Você, caro leitor, de certo ficará
encantado com ela, tanto quanto eu. Verá que anginha ela é...
Primo a campainha. Sua irmã vem abrir a porta.
- Olá! - Digo, oferecendo-lhe aquilo que tentava ser um sorriso.
- Oi, João. Tudo bom? A Talita não está.
- Como assim?
- Foi com umas amigas lá pelo Cristo Redentor.
- faz muito tempo isso?
- Que nada! Deve estar já voltando. Recebeu um telefonema, disse
que ía para lá e não se demorava. Quer entrar e esperar um pouco?
Mamãe fez creme de abacate.
- Não, Camila. Muito obrigado. Vou encontrá-la. Voltamos para casa
juntos em breve, tudo bem? Guarde creme para dois.
Dizendo isso, despedí-me e me afastei, usando meus poderes na
esquina para chegar mais rápido ao lugar indicado. Vampiros ten os
sentidos mais desenvolvidos, embora possam escolher quando usam essa
faculdade. Ao aproximar-me, abro ao máximo os meus canais senssitivos.
Não quero ver mal nenhum rondando a minha Talita. Tenho que protegê-la,
lembra? Meu coração está feliz, agora. Vejo-a. Está linda na sua calça
geans e na sua camiseta. Seus cabelos voam com o vento, como asas
delicadas de um pássaro gracioso. Ela está conversando com alguem. Não
conheço este moço. Será que está importunando-a? Vou dar uma lissão
nele! É capaz que eu me alimente novamente essa noite só para lhe ensinar
uma lissão. Mas, antes, melhor ser calteloso. Às vezes é apenas um
amiguinho da escola. Eles conversam.
- Talita?
- Eu tenho namorado, Do.
- E daí? Você já fez isso antes.
- Mas....
- Se você não quer, eu vou embora e não te atormento mais.
- Não, Do... Eu sempre gostei de você.
- E no entanto vive aos beijos com esse ilustre desconhecido.
- Não é um desconhecido!
- Claro que é!
- Do, não faz isso! Eu sempre fui louca por você.
- Foi, é?
- Sou.
- E o desconhecido?
- Foi só para te provocar.
- Então, conseguiu seu objetivo, doçurinha.
Agora ele a abraça. Não, eu não estou vendo isso! Não pode ser
isso! Ela aproxima-se mais. Turistas passam por eles.. No alto, o
Cristo redentor, imponente e bom, assiste a esta traição. Eu, também no
alto, não sei o que fazer. Eles se beijam.. Ela beija-o. Despenteia
seus cabelos e beija-o. Diz-lhe palavras de amor que nunca me disse e
beija-o. cobre seu rosto de beijos e abraça-o. De repente, afasta-se.
- Agora tenho que ir, Do.
- Mas por quê?
- O "Desconhecido" deve estar lá em casa, esperando-me.
- Vai terminar com ele?
- tenho que ir com calma. O coitadinho é tão apegado a mim que...
Isto é de mais! Tremo. Quero me queimar no sol. Quero nunca
existir. A minha Talita está fazendo isso? A minha pura, doce e meiga
talita? Após a surpresa, vem a raiva. Isto não pode ficar assim.
**

Eu era pouco mais que um neófito quando soube que a escravidão
acabou. Tinha pouco mais que um caixão de meu, mas faria o possível
para ter minha mãe junto de mim, para poder dar-lhe o mínimo de
conforto e o máximo de assistÊncia possível.
Por isso, dirigí-me ao ingenho disposto a levá-la comigo. NO
caminho, vislumbrei uma fila de miseráveis, todos pretos, anônimos,
êx-escravos que não tinham para onde ir. Atrás de todos eles, estava uma
velha muito maltratada pelo tempo e pelos árduos trabalhos que lhe
impuseram desde muito menina. Aproximei-me, penalizado. Tinha que
ajudá-la. Ao olhá-la de perto, tive um choque: era minha mãe. tornei-me
visível e oferecí-me para ajudá-la com a pequena trouxa que carregava.
Ela parou de andar, ficando ainda mais para trás na fila. Depois,
fitou-me demoradamente e seus olhos espelharam um reconhecimento que eu
jamais teria esperado.
- João, meu filho!
Dizendo isso, sentou-se no chão de terra batida, quente e árida.
- Eu sabia que você viria.
- Vim buscá-la, mãe. - Foi a primeira frase que me ocorreu.
- O Senhor já vem me buscar, João.
- Como assim?
- Que bom que nos encontramos! Você vai ser bom, não vai?
- Sim, mãe. E eu vim buscá-la! tem umas coisas que a senhora
precisa saber, mas..
- Só me prometa que vai ser bom.
- Eu vou ser, mãe.
Ato contínuo, sem saber bem por qual motivo, abracei-a e ela
expirou nos meus braços.

**

Ser bom é algo que está além das minhas possibilidades nesse
momento. Agora, sou todo frieza e maquinação. Observo a garota próxima
ao Cristo redentor. Passam muitos turistas, mas eu não os vejo. Ela se
despede e beija seu novo namorado. Vira-se de frente e eu torno-me
visível, aparecendo por trás dela.
Toco-lhe o ombro com suavidade.
- Tali?
Ela vira-se. Parece perturbada.
- João? Há quanto tempo está aqui?
- Acabei de chegar.. Por quê?
- Nada, não. Só perguntei.
Vamos pra casa?
- Sim, vamos. Hoje tem creme de abacate.
- Ah, sim? Você passou lá?
- Foi o que combinamos. Mas, antes, quero te mostrar uma coisa.
Como já te disse, talita ignorava por completo a minha natureza
sobrenatural. Entretanto, nãO PODERIA APENAS MATÁ-LA, NÃO É? aBRACEI-A
COM FIRmeza e delicadeza.
- "Você vai ser bom, não é? " - "HOje, não, mamãe. Hoje, não."
Com minha mente, fiz com que ficássemos invisíveis e começamos a subir.
- João, o que é isto?
Celei seus lábios com um beijo delicado e pacífico.
- Uma surpresa, minha prenda.
Ela estava atônita, mas logo depois deixou de raciocinar e
começou a olhar a Cidade Maravilhosa do alto.
Abracei-a novamente e deixei que meus dedos se perdessem na meiguice
dos seus cabelos. Sem desmanchar o gesto de carinho, comecei:
- Por que você fez isso, tali?
- Isso o quê? - perguntou ela, parecendo confusa.
- Beijou aquele outro.
- Ah... Ele... Ele me forçou...
- Não mente pra mim, tali.
- Mentindo, eu?
- tali, eu sei de tudo.
- João, você está me assustando.
Ficamos deitados no ar. Beijei-a novamente eprocurei seu pescoço.
Uma expressão de medo e surpresa refletiu-se nos olhos dela quando
sentiu a mordida e a dor lancinante. Não se debateu nem gritou.
deixou-se ficar. Provavelmente pensava que sobreviveria.
Seu sangue quente passava para mim. De repente, tornou-se mais
inerte. Seus cabelos tremeluziam como asas de um pássaro moribundo. Suas
mãos, flácidas, pendiam para os lados do corpo. Estava tudo acabado.
Olhei para baixo e avistei o Cristo redentor. Sem pensar muito,
desmanchei o abraço, fazendo com que seu cadáver deslizasse, passasse
entre os braços do Cristo e caísse pesadamente no chão de pedra.

Conversando com Deus

Conversando com Deus

Chegou, sentou e esperou. Ao ser interrogado sobre suas motivações,
retrucou que precisava de um laudo psiquiátrico. Quando o outro quis
saber do porquê, atalhou que estava prestes a casar e, portanto,
necessitava daquilo .
Problemas anteriores? Não, de modo algum. Sempre fora um sujeito
correto e razoável, em todos os sentidos. Mas agora pretendia casar e o
laudo se fazia indispensável. Ao ler a pergunta nos olhos do psiquiatra,
explicou:
- não quero que minha futura esposa se sinta insegura a meu
respeito. Quero lhe dar a certeza absoluta de que não tenho qualquer
anomalia .
- E por que ela suspeitaria da sua saúde mental a ponto de precisar
de um laudo? - quis saber o médico, parecendo, pela primeira vez, estar
ali.

- Um sujeito não se pode casar guardando da mulher um segredo tão
importante sobre si mesmo, tal qual é o da sua verdadeira natureza,
pois não?

O outro assentiu, com um olhar de nada na ponta das pestanas
espessas.
- Qual sua verdadeira natureza?
Tartamudeou um pouco antes de falar. Enquanto isso, o médico o
olhava de forma mais intensa. Tratava-se do indivíduo que se poderia
visualizar em qualquer situação. Um corpo comum e bem proporcionado, mil
faces poderiam caber para aqueles cabelos negros, e mil expressões
fisionômicas nos olhos castanhos e queixo voluntarioso. Contudo, de tão
comum, tornava-se singular. As mãos grandes e quadradas pousadas
sobre a mesa entre os dois, não despertavam qualquer imaginação,
especialmente ao sujeito sem imaginação que as fitava, enquanto
esperava uma resposta, que, de repente, parecia custar demais a
chegar.
- Ela não tem mais muito tempo, você sabe. Sei que pode senti-lo.
O médico surpreendeu-se. Em um átimo, passou a considerar a
possibilidade de ter diante de si um indivíduo louco, deveras.
Buscou um vislumbre de insanidade por detrás dos olhos
castanhos, apenas para descobrir que dentre todas as expressões que
podiam abrigar, a loucura estava fora de cogitação.
- Do que está falando? - Indagou, procurando, sem muito êxito,
dissimular a confusão que lhe ia no íntimo.
- Da sua mãe, naturalmente. - Atalhou o outro. - você sabe que a
vida escoa dela como a água derramada sobre a areia. Sabe que, em pouco
tempo, não restará mais tempo, apenas recordações e a dor do que deveria
ser feito e não foi, do que deveria ser dito e ficou preso para sempre.
O outro quis falar, mas voz não tinha. Como podia um estranho que
pleiteava um laudo saber da sua mãe e dos seus mais recônditos
sentimentos?
Entretanto, o outro continuou, aparentemente insensível ao que
provocava ao seu redor:
- Quanto ao divórcio em marcha, é tão certo que compreendo suas razões, quanto
que aconselharia uma observação mais detida sobre a real gênese do
contexto.
Ao que aparentou, apenas então o facultativo recuperou a voz para
perguntar:
- Quem você pensa que é? - Exigiu, a cólera e a surpresa
mesclando-se no seu íntimo.
- Eu não penso; eu sou. Sou Deus.
Ficou provado que das coisas mais instáveis de tudo aquilo era a
opinião do médico quanto ao homem que tinha diante de si.
- O atestado... Tem alguma ligação com isto?
- Toda. - Respondeu-lhe, enfático.
- Você se acha Deus...
- Creio não haver me explicado corretamente. Eu sou Deus.
- Deus... O "Lá de cima"?
- Eu crio e dou norte, razão e destino. Começo e termino, corto pelo
meio ou acrescento mais vida.
- Você quer me dizer que é Deus e quer de mim um laudo em que eu
assine sua saúde mental?
- Precisamente. - Confirmou o outro, com a mais natural das
expressões.
- Escute, isto só pode ser uma brincadeira.
- Jamais. Jamais brincaria com qualquer questão que se
relacionasse à mãe e à esposa de quem quer que fosse, menos ainda com as
de alguém a quem vim pedir um favor.
- Deus me pedindo um favor, casando-se e dando palpites sobre meu
relacionamento filial e conjugal... Decididamente, há louco para tudo.
- Pode alguém ser louco por perceber os sentimentos dos demais e
afirmar-se Deus? Acaso poderá enquadrar-me em algum quadro patológico
conhecido? Acaso não terão, ao longo dos tempos, chamado louco todo
aquele a quem não logravam compreender na perfeição? Existem doentes e
doenças, é verdade, mas para avaliar corretamente , há que se ter as
mais mínimas provas. Que provas tem você de minha inadequação à
sociedade ou da minha incapacidade de estar dentro dela como pessoa
normal?
Todas essas coisas foram ditas de forma sumamente digna, sem que a
autoridade passasse desapercebida. Agora era ele que exitava, mais pelo
que o outro lhe provocava, que por quaisquer questões médicas.
- Se Deus viesse à Terra, jamais se casaria.
- Com que então, sabe da natureza íntima do criador?
- Hora, ninguém o sabe. Mas é certo que não se casaria. Ele não
precisaria disso.
- Não? Hora, por favor! Não queira parecer que sabe o que é estar
aqui, sendo-se Deus! Uma compreensão de tudo e de todos, sem
possibilidades reais de ajudar, até que cada um decida, a seu tempo, que
está cansado de andar por onde esteve; desejar viver anônimo e oculto,
sem a companhia dos que se lhe afinizam com os propósitos mais
intrínsecos! E
o desejo de criar, a febre de fazer do nada alguma coisa, porque não
suporta ver o universo semeado do que poderia ser chamado de coisa
nenhuma! Não me diga que conhece das noites em vigília e dos dias
intermináveis!
Não venha me dizer que entende! Compreenderia, acaso, a dor da solidão
sentida por aqueles que desejam seguir um rumo distinto do da maioria
sendo, por isso, essencialmente mal compreendidos, quase em toda parte?
O relógio sobre a mesa marcava o tempo que passara. Do outro lado da
porta, outros pacientes aguardavam. O Dr. Olavo Freitas lembrava, sem
custo, aquelas sensações, ainda que jamais se supusesse Deus.
Permitiu-se cogitar da enormidade de seus padecimentos caso se cresse
divino. Certamente, se descobrisse a mínima afinidade, o mínimo gesto de
compreensão, não hesitaria em unir-se-lhe para sempre, se tal fosse um
desejo partilhado.

- Se é Deus, faz um milagre. - Sugeriu, sem pensar muito no que
dizia.
- Já o fiz. Você passou da burla à dúvida.
- Refiro-me a algo mais contundente, como dividir as águas, caminhar
sobre elas ou fazer parar a Terra.
- E então acreditará que sou um magnífico prestidigitador. Receio
que não. Também receio que seus demais pacientes o aguardem ali fora, e
que cada um deles tenha pendências ao saírem daqui. Não devo, com meu
pedido, por mais essencial que seja para mim, obstar a que continue seu
trabalho.
Levantou-se educadamente, estendendo a mão ao facultativo que,
surpreso, custava a compreender a mudança de disposição do outro.
- Visite-a, quando sair daqui, independendo de sua decisão. É livre
para agir como melhor convenha. Isto não será por nós, mas por sua
esposa.
Com estas frases aparentemente incompreensíveis, deu-lhe as costas e
saiu, fechando a porta delicadamente, ao passar.
Da gaveta da mesa, uma folha deslizou para fora. Habilmente foi
preenchida e assinada. O carimbo pousou prontamente, dando-lhe o
valor esperado. Da mão do homem, ela viu a porta sendo aberta. O outro
esperava, dizendo qualquer coisa à secretária. Pelas mãos do homem,
mergulhou em um envelope pardo, de onde nada mais pôde ver.
Nos tempos de escola, elas eram muito amigas. Pareciam mais irmãs
que nora e futura sogra, de forma que a união conjugal mais se
assemelhava a um trio fraterno a executar divina harmonia, em que cada qual sabia da sua
importância e lugar na mesma proporção em que enxergava e aceitava o dos
demais.
Assim fora por longos anos, felizes e prósperos, em que o amor se
fazia árvore frondosa e acolhedora. Um dia, porém, inexplicavelmente,
sogra e nora se separaram, e sem mais, a mãe do facultativo foi perdendo
o acordo de si. Da confusão passou a uma loucura inequívoca e, tão logo
ela foi conduzida a uma clínica, seu casamento perdeu a fluência. O trio
não soube tornar-se duo. Sentados no sofá, não tinham o que dizer.
Deitados na cama, a noite fazia-se vazia de um desejo que não chegava.
Acomodados no carro, as ruas e estradas passavam por eles, sem que
qualquer palavra lhes passasse pelos lábios. Ele podia lembrar-se de
tudo isso, enquanto o automóvel rodava pelo asfalto regular até o
hospital psiquiátrico.
Conduzido pelo enfermeiro de sempre, com os uniformes quase
imutáveis passando por eles, chegou até o quarto em que a mãe jazia.
Sedada e inerte, percebia-se, mais uma vez, de forma quase tangível, a
vida se lhe escapando apesar dos remédios endovenosos.
De súbito, seus olhos se abriram e uma compreensão inexcedível
espelhou-se neles, como há anos não se via.
Ela então falou-lhe, em tom claro e baixo, as lágrimas quentes e
redentoras rolando-lhe pela face macilenta. E do relato veio a gênese de
tudo, e da gênese, a capitulação. Do conjunto dessas coisas veio o perdão, e com ele,
a paz. As mãos dadas no silêncio do quarto asséptico deram-lhe coragem
de falar o que jamais dissera. E no diálogo pacífico e sincero, pôde-se
sentir de forma inolvidável a presença de Deus. Palavras contidas com
custo saltaram em turbilhão, procurando reter a vida que continuava a
esfumar-se como que fluísse de um conta-gotas imparável, até que a
última gota tombou e a mão ficou inerte sobre o leito.
Pelo diálogo esclarecedor e pela verdade revelada, o processo
de divórcio foi suspenso. De mãos dadas, no cortejo fúnebre, ele pôde
ver um casal a sua frente. Ela, uma jovem comum, como aquelas que eram
vistas em toda parte; ele, tão vulgar que fazia-se singular. Um
tremor seguiu o brilho de reconhecimento dos olhos do médico.
- Você os conhece, meu bem? - Perguntou-lhe a mulher, em um
sussurro.
Mas a resposta não foi necessária. Encaminhando-se aos dois, o homem
estendeu-lhe a mão.
- Veja, Amália, este é o médico que assinou o laudo que te
apresentei quando te disse que era escritor.

Plantação de mortos

Plantação de mortos

Era uma vez um homemcujas idéias esfervilhantes não podiam ser
contidas no quartinho pequeno em que passou sua infância e adolescência.
Por lembrança singular, guardava o timbre terno, o
toque suave e firme em seus dedos minúsculos e o cantochão que o
incitava a dar seus primeiros passos: dandá... Dandá...
Era uma vez um homem cuja mente brilhante era demais para a cidade
litorâea em que cresceu. Como outra de suas lembranças mais recorrentes,
guardava o coro dos alunos na escola, as mãos sujas de terra, as aulas
intermináveis e repletas de conceitos que ele compreendia mal eram
enunciados.
Era uma vez um homem cujas perspectivas de um mundo novo não
combinavam com o ideal da sua cidade, tampouco do seu país. Foi por isso que,
um dia, ele se foi, todos seus pertences amontoados na maior mala da
casa, cuidando para não olhar para trás, sequer uma vez.
Era uma vez um homem que tinha uma mente e idéias tão soberbas, que
levaram-no a travar conhecimento com os mais próximos de um dos homens
mais conhecidos do seu século. Sua competência e ambissões
encontraram eco naquela nação sacudida por ventos estranhos, e ele lá
prosperou.
Do real para a fantasia, sua habilidade no xadrez transferiu-se para
os planos de conquista que engendrava, e mais que uma viória teve a nascente
no seu cérebro privilegiado.
Um dia,porém, o homem de que fala nossa história foi visitar um dos
campos nos quais suas sementes caíam há já um ano. Conduzido por outros,
sob um Sol primoroso, abeirou-se de área afastada, reservada de
inconvenientes.
- Aqui jazem mais de cinco mil! - segredou-lhe um de seus
subordinados.
De fato, sob a luz cegante, o homem contemplou os campos perfeitos
e inocentes. A terra fora remexida aqui e ali, sem, todavia, delatar o
segredo que seu seio abrigava. Entretanto, ainda assim, o homem creu ver
plantações de cadáveres que se lhe afiguravam à vista. Ali, raízes de
pernas raquíticas identificavam um velho; acolá, hastes tenras
denunciavam os membros de uma menininha; mais além uma família, logo
eram ruas inteiras, trasladadas à terra maldita, semeando de miragens
expectrais a paisagem outrora bucólica.
- São como uma plantação de mortos! - sussurrou, quase em transe.
- Ah, sem dúvida. - COncedeu seu subordinado. - Há que deitar fora as
más sementes, para que um novo mundo possa florescer.
Os cabelos louros daquela visagem feminina agitavam-se como flâmula ao vento,
parecendo a parte mais condensada da figura que timidamente erguia-se de
um rincão de terra que não trazia nada de particular em sua superfície. A
tonalidade das madeixas fê-lo recordar a figura materna, asmãos presas
às suas, entoando o cantochão da infância que outrora tantas vezes
negara. Era como se os mesmos cabelos
pudessem estar ali,nas lembranças mais recuadas; como se ela pudesse
jazer, anônima e esquecida, naquele lugar ermo.
Os compromissos mais urgentes foram anulados, graças ao prestígio
que o envolvia. O homem que era grande, apeqenou-se ao entrar na casa
deserta. A voz adulta, como que foi perdendo a firmeza, à medida que
buscava nas paredes a lembrança de alguém que deveria estar lá.
Informado por contatos em comum, soube que quem procurava
refugiara-se em outro país, desejando passar seus últimos dias em terras
que, para ele, quase não diziam nada.
O homem, entretanto, buscou-a, até descobri-la, recostada em leito
humilde, as mãos descarnadas e gélidas, o sorriso perene no rosto.
Seu diálogo foi repleto de palavras não ditas, de sentimentos sem
nome, de trocas sem quantia.
- Ajudei a semear um campo de mortos!- Disse ele, quando encontrou
voz.
O sorriso da mãe a fitá-lo era acolhedor, porém não o contradizia.
- Como eu posso viver com isso, daqui para frente? - Tornou, depois
de longo silêncio.
- Não pode. - aquiesceu ela, o tom brando e firme de outros tempos.
- Então, o que eu faço? - INterrogou.
- Não faça; refaça.
De lá saindo, voltou ao seu antigo posto, e começou a propagar aos
quatro cantos a verdade que vira. Não eram sementes de um mundo novo, mas
uma plantação de mortos. Descreveu os vultos diáfanos que brotavam do
solo,os cadáveres jazendo
sob a terra maculada, a flâmula de cabelo louro que poderia ser composta
pelos cabelos de qualquer mulher.
Enfurecidos, trancafiaram-no no barril de sementes.
Desesperado, viu-se degradado ao nível extremo,despido de seu nome,
sua personalidade e roupas. Os mais pérfidos tratamentos eram-lhe
ministrados ao som de música clássica, e viu morrer e matarem por causa
de um pedaço de pão, uma fatia de bolo, um sonho sonhado grande demais.
O bafejo da doença não o alijou de trabalhos exaustivos. No silêncio
da noite, ardia em febre,pondo-se a delirar sobre uma plantação de
mortos, os gritos ensandecidos casando-se com o canglor dos torturados
de toda sorte.
Pressionando contra seu rosto, porém, ele encontrou uma mão, dedos
finos e retorcidos, umbraço esquelético e triste. O rosto dela era pálido,
quase peroláceo,mas seu sorriso tinha a testura de sorrisos de anos de
sementes de verdade.
Contra seus lábios, água foi derramada, e gentis mãos guiaram sua
garganta para longe da cede excruciante.
O homem cujas idéias não couberam no seu país, trabalhava de dia,
morria à noite. Ainda assim, aquelas eram as horas de que ele gostava
mais. Os cuidados maternais daquela desconhecida,não só infundiam vida a
um corpo que não a comportava, como também limpava seu campo das
sementes daninhas.
Um dia, porém, para eles o tempo de espera acabou. Era tempo de
serem semeados. Ao ver-se há poucos passos da hora estrema, suas pernas
vacilaram. Os lábios murmuraram incoerentemente sobre a plantação de
mortos e certos cabelos que, àquele tempo, seguramente jaziam sob
terras longínquas, enquanto os demais, ao seu redor, nada diziam. Os passos lépidos
de outrora tornaram-se tíbios e vacilantes.
A ampará-lo, descobriu a mulher das noites de delírio. Tão lento era
seu caminhar e tão terna a mão que o socorria, que percorreu ospassos
derradeiros quase ouvindo as palavras da sua primeira lembrança: dandá....
Dandá... Dandá...
E antes do instante final, teve o primeiro pensamento realmente
lúcido em semanas: "antes ser semente que semeá-las."

Sua escolha

França. Século XIX. Todo o tempo, Paulina creu que Clara fosse sua
bem-feitora, embora houvesse uma exitação intangível nas suas
convicções.
Porém, quando o pano desceu e a verdade veio à tona, uma desconfiança virou
certeza e a certeza
virou ódio. Os insultos conhecidos não eram suficientes. Insuficientes seriam
aqueles que pudessem ser inventados. Decepção. Amargura. Revolta.
Clara foi a primeira a ser acolhida, cansada de sofrer e vagar.
Depois de algum tempo, revistos os paradigmas, percebeu todo mal que
tinha feito. Marcaram encontro com Paulina. Enfrentaram a verdade cara a
cara. Veio o entendimento. Perdoa? Perdoo. E como todo mal para
desaparecer tem que ceder lugar ao bem, marcaram novo encontro. Itália,
séculos mais tarde. Uma negociação difícil. Paulina não queria:
desconfiava. Clara garantia, afiançava, jurava de joelhos. Fazia as
promessas desfilarem em procição. Elencava boas intenções. Pedia,
implorava. Mãe e filha, um dia.
Clara voltou. Reduzida à expressão mínima, de pingo virou botão, de
botão fez-se rosa menina, florescendo pela haste umbilical. Na infância,
encontravam-se, nos momentos em que a pequena dormia. Clara e Paulina, promessas avivadas. Minha filhinha... E
chamava Paulina às bonecas que possuía.
Clara mostrou-se claramente inteligente, mesmo brilhante. Sua
capacidade floresceu junto com o corpo bem proporcionado. Esperta,
sonhos aos montes. Baús fechados e abertos deles, uma profusão.
A idéia da filhinha perdeu-se nas ambissões acadêmicas. Um
bacharelado, um mestrado, um doutorado, cursos no exterior, e então,
depois, só depois, viria a filha, se não lhe ocorresse nenhum outro
objetivo.
Mas o amor falou mais alto. Sandro primeiro foi sonho, depois foi
possibilidade; finalmente fez-se conquista, realidade palpável,
pontuando seus anelos com uma vírgula inesperada.
Ora, ele queria as mesmas coisas que ela. Também tinha uma
inteligência notável, não a jungiria a um casamento tradicional, sem
horizontes profissionais. Clara teria sua carreira, seus diplomas, seu
conhecimento encrementado exponencialmente... E teria um marido que
também olhava na mesma direção... Alguém para partilhar a garrafa de
café preto, nas noites de estudos e insônia.
Por que não? Sim. E o sim foi repetido, primeiro no jardim da casa
de Sandro, depois, no autar. Noiva linda, de branco, resplandecente.
Paulina a tudo assistiu. Chorou, encantada, fazendo os mais ternos
prognósticos. ,
As bodas enterneceram Clara. Uma família, por que não? Encontrou um
gosto para a vida doméstica que ela desconhecia. Fora das amarras
físicas, reencontrou Paulina. As promessas agora eram cataratas. Um
quarto cor-de-rosa, o escritório convertido em ninho de esperas para
depois desabrochar em tabernáculo de amor e ternos cuidados. A
princesa, a bonequinha. A equipe que acompanhara o caso desde o
princípio, exultava.
O tempo passou. O estágio era exigente, as obrigações apenas
cresciam. Sandro estudava tanto, que passava dias inteiros sem aparecer em
casa. Quando retornava, discutiam ferozmente. Não era possível que
alguém passasse uma semana apenas estudando na casa de amigos. As
discussões obrigatoriamente terminavam entre os lençóis.
Susto, surpresa, rejeição. Absolutamente, foi o que decidiram. O
casamento não vai bem; os estudos, por sua vez, não poderiam estar
melhores. Um bebê, sim, claro, teriam uma família... Se superassem a
crise, se fosse o desejo dos dois, se as carreiras de ambos oferecessem
espaço. Antes, não. Assim, sem aviso, de modo algum.
Mais uma vez, encontraram-se durante o sono. Argumentos, lembranças
das promessas empenhadas... Nada adiantou.
Enquanto isso, Paulina, reduzida à mínima expressão, sentia o
perigo, confundia-se toda, antigos receios, apagados com muito custo com
acehnos de entendimento, retornando com força total.
Quaisquer argumentos eram inferiores à vontade férrea do casal.
Arcariam com o compromisso, mas, não agora. Paulina que tentasse mais
tarde. Eles que tentassem mais tarde. Estavam na carne, deviam atender
seus imperativos. A vida não era fácil. Não se sentiam em condições.
Ganhavam bem? Ora, isso sempre pode ser relativizado. Não ainda, não
agora, sentiam muito, mas não haveria capitulação.
Noite. Para ela, a escuridão seria para sempre vermelha. Soube de
tudo antes. Quase sentiu antes que chegasse. Imaginou e plasmou o
momento
milhares de vezes, até que veio o real, e não era, de modo algum, como
supusera: era muito pior.
Depois de tudo, silêncio. Escuro, muito escuro. Em seguida, luzes
azuis e brancas. Atmosfera suave. Mãos carinhosas, uma coberta puxada
sob seu queixo.
Os olhos abertos, olhou suas mãos... Minúsculas, numa paródia do que
teriam sido... A cabeça pequenina, mas, ainda assim, desproporcional. O
tronco era o de uma mulher; as pernas e os pés, de um feto.
O grito de horror jamais saiu de sua boca. Vingança! Exigia, os
olhos fechados, a alma inteira mergulhada em um paroxismo de angústia
indizível. Deus
teria de tomar providências. Ele não deveria permitir.
O quarto dos
seus sonhos agora lhe parecia tingido de vermelho. Vermelho, vermelho,
como vermelha para ela seria a escuridão por muito e muito tempo.
Meses se passaram. Não sabia bem quando era noite ou dia. As horas
se derramavam embebidas numa infusão de ódio atordoante. Matá-la. Arrastá-la pelos
cabelos com força, com tanta força, que haveria de separar-lhe a cabeça
do corpo no processo. Depois, ah, sim, sem dúvida, arrastar essa cabeça
até a ignomínia completa, os abismos tortuosos, as palavras que
ensandeciam, o caos absoluto. Gritos, vozes, apodos aviltantes,
chafurdando na lama da raiva sem freio nem medida nem direção. Não
haveria mais carreira brilhante alguma. Uma vida de tormentos,
frustrações e culpas. Ela sabia aonde seu quase pai estudava, nos
últimos tempos. Far-lhe-ia saber da pior forma possível.
Superpotencializaria a informação até o infinito. Derramaria a miséria
na sua vida como vidro moído mergulhado em ácido com alto poder de
corrosão. Oh, sim... Uma eternidade inteira para planejar e executar,
torturar e aviltar... E o quarto cor-de-rosa tingido de vermelho.
- Paulina, Paulina, por favor...
A princípio, a voz era suave e branda; depois, fez-se exigente,
imperiosa, ainda que não subisse o tom.
Os olhos se lhe abriram. A agonia elevada à potência limite, contemplou o lugar em
que estava. Por um breve instante, pensou que se descobriria no mundo
quente e morno do qual fora outrora senhora, e que tudo aquilo foram
temores infundados da sua alma ainda incerta sobre as blandícies do
amor. Mas estava lá. O ambiente ascético, a mulher de túnica alvíssima
segurando sua mão com a delicadeza de um anjo e a determinação de um
titã.
- Paulina... - Sussurrou a outra, na penumbra. - Por favor, não
faça mais isso.
Buscou em si ódio suficiente para a atordoar no próprio instante que
a mirasse, mas a ternura infundida pelo toque dela não o permitiu. Os
olhos de ambas se encontraram. Em um átimo, a outra esquadrinhou a
mente da enferma. No silêncio, ela percebia o que estava acontecendo,
mas sentia que tudo era feito com tanto amor, que não poderia
rechassar, mesmo que quisesse. Só naquele momento, percebeu quanto
precisava de afeto, embora julgasse que apenas necessitava manter o ódio que a
unia àquela que comprometera-se em recebê-la. Mas a compreensão da
outra banhou suas fibras ressequidas
pelos sentimentos em desalinho qual néctar de propriedades curativas.
Em uma miríade de impressões suaves, passadas de uma mente para a
outra, a enfermeira deu-lhe seu nome, como quem oferta uma recordação
de uma noite sagrada, etérea e remota: Larizza. idéias fluíram
entre ambas,
sem que precisassem falar. Da raiva instintiva, Paulina passou a um
respeito legítimo.
Ainda assim, não pôde soptar a pergunta que lhe veio à mente.
- Onde está Clara? - Perguntou, estranhando o som da própria voz.
- Clara? - Indagou, como quem estivesse provisoriamente incerta
sobre o rumo que a conversa estava tomando - está bem, acho.
- Bem? Ela está bem? - Estivera suspensa em uma outra realidade,
pensou. Entretanto, a idéia de que a outra estivesse simplesmente "bem",
fê-la voltar à postura anterior. - VocÊ tem idéia do que está me dizendo? Depois
de tudo o que fez, ela está bem? Tem
idéia da ignomínia que ela me fez? Clara prometeu! E não foi a primeira
vez que falhou.
- Sim, eu sei.
- Sabe? De verdade? E então, o que me diz disso?
- Paulina, por favor, descance. Agora não é o momento de conversar
sobre isso.
- Ah, não? Não é o momento? E quando será o momento? Quando ela
fizer com outra pessoa, e outra, e outra e mais outra? - Perguntou,
tentando soerguer o corpo do leito, sem obter sucesso.
Olhando-se, percebeu que todo o seu corpo, agora, parecia ao de um
bebê.
- Paulina... Escute, tudo ainda pode ser refeito. Foi terrível, é
verdade, todos nós reconhecemos, mas eles ainda são jovens, podem
amadurecer e, depois, se você quiser, poderá voltar outra vez.
- Voltar? - Inquiriu, o rostinho miúdo voltado na direção da
interlocutora, banhado por expressão atormentadíssima. - Você supõe que
eu deseje voltar?
- Escute, Paulina, nada está decidido, não precisamos pensar nisso
agora. Temos um longo caminho, até sua recuperação completa.
- E enquanto eu estou aqui, ela está aonde? Ela está aonde?
Em silêncio, a enfermeira estendeu-lhe as mãos, de onde emanaram uma
luminescência azul e suavíssima. Dentro de poucos instantes, Paulina
adormecia, o corpinho serenado, acomodado no lençól alvo.
Seu sono foi agitado; os sonhos, entremeados de vingança. O ódio
que sentia adquiria proporções destrutivas. E o quarto rosa tornando-se
escarlate.
Mais uma vez acordou e olhou para baixo. Graças ao trabalho dos
médicos, sua aparência voltava a ser como antes, os olhos
percucientes e claros, os cabelos finos, loiros e ralos, a boca que podia ser,
dependendo das circunstâncias, mesquinha ou afetuosa.
Daquela vez, também ela estava lá, sentada, uma presença serena e
firme, contra a tarde calma que se escoava lá fora.
- Onde ela está? - Perguntou, uma vez mais, com a certeza de que a
outra sabia muito bem a quem se referia.
- Eu não sei, Paulina.
- Sua notícia mais recente? - Inquiriu, agora sem desejar
destroçá-la com a simples fúria dos seus olhos. Entretanto, de algum
modo, a fúria recolhida pesava mais que a explosão da
entrevista anterior.
- Não sei exatamente. Acho que estava recolhendo material em Paris.
- Paris? Irônico. Por que ela não aproveitou e não fez uma pesquisa
breve sobre sua última vivência, em Paris? Talvez isso lhe pudesse ter
ensinado alguma coisa sobre promessas.
Um suspiro quase imperceptível, os olhos nos dela.
- Paulina, faz já dois anos. Você não poderia...
- Não. Não faz dois anos, faz dois minutos! Eu sei que sabe, melhor
que eu, que o tempo é relativo. Faz dois minutos, dois segundos, sem
dúvida, menos de dois dias, e ainda tem coragem de defendê-la?
- Então não percebeu ainda que eu estou defendendo você? - Indagou.
Seu tom era firme, porém brando, as mãos fechadas sobre o pulso da enferma
com urgência e doçura.
Uma vaga de confusão atravessou os olhos de Paulina, e a outra
tratou de esclarecer:
- Você está se aprisionando a isso. Está permitindo que isso te faça
ainda mais mal. Está retardando seu próprio restabelecimento, perdendo
tempo valioso.
- Eu não me importo. - Proferiu, a voz um pouco acima que o
recomendável.
- Não? Com o que você se importa?
Paulina permitiu que as emoções viessem à tona. Tocou-as brevemente
com os dedos, antes de deixá-las vir à luz. E, embora as palavras
seguintes parecessem pedras atiradas ao rosto da outra, ambas sabiam que
eram à ausente que elas se destinavam.
- Com ela. Quero que ela viva todo o horror que me fez viver. Quero
que ela sofra, que blasfeme, que se afunde na própria miséria! Que
perceba o que realmente existe, por trás daquela maldita máscara de
civilidade. Quero que ela se odeie. Que morra de vergonha de mim. Quero
vê-la patinar nas próprias imundícies e, talvez ali, rogar-me
misericórdia, para que eu feche em seu rosto a mesma porta que ela me
fechou.
- Ah... É isso que você quer? - Perquiriu Larizza, os olhos
cintilando com uma luz nova, a expressão determinada, as mãos
desprendendo-se do pulso da outra, os cabelos agitando-se levemente, com
a sua alteração.
Paulina registrou tudo isso e olhou-a, um tanto confusa.
- Apenas responda-me se é isso que você quer.
Agora, ela hesitou, começando a perceber que o diálogo que
travavam passara a ser bem
mais que retórica.
Diante da surpresa crescente da enferma, Larizza ergueu-se da
posição em que estava. Com movimentos experientes, retirou todas as
mantas que aconchegavam o corpo quase refeito de sua protegida.Puxando-a
por uma das mãos, fê-la levantar-se, sentar-se no leito, convidando-a a
descer dele, e se houve gentileza enquanto ajeitava-lhe a escada sob os
pés, havia um ar implacável quando, sem dizer palavra, não lhe dava
tempo de pensar no que estava acontecendo.

Paulina sentiu a frialdade do chão. Saiu da sala aconchegada, e
recebeu, no rosto, a luminosidade do Sol poente. A enfermeira segurava-a
pela mão, decidida e enérgica, puxando-a, sem agressividade, mas de forma
irresistível para fora, sempre para fora.
Então os seus pés sentiram a terra macia dos jardins, o nariz
registrando a suavidade das flores, os olhos deliciados com a festa
das cores e das aves voejando no firmamento. Os cabelos finíssimos e
ralos moviam-se com o balanço da brisa morna, ao mesmo tempo em que
continuava a andar. Viu grupos de pessoas atarefadas que passeavam-se
nas mais diferentes direções, um ou outro monumento ornamentando uma das
muitas praças por onde passavam. Nos edifícios oficiais, a bandeira
tremulava gentilmente, ao mesmo tempo em que música indizível
sobrepairava na atmosfera, emprestando a tudo um ar em que sentido de
responsabilidade e prazer mesclavam-se, mais que o que se imaginaria.
Costurando pelas ruas pavimentadas, pelas praças e pelas fontes de
água puríssima, sua guia continuava a incitá-la a andar, puxando-lhe
pela mão, sem qualquer trégua, sem dizer-lhe palavra, quase sem olhar
para ela, enquanto a fazia passar das ruas residenciais para os campos,
dos campos para os bosques entremeados de nascentes encantadoras, das
nascentes para um descampado inesperado, do descampado para um declive
que ia descendo, descendo. Com ela desceu por mais de dez minutos, o som
da música dulcificante deixado para trás, a visão do Sol poente
substituída pela escuridão quase imperscrutável de um céu sem estrelas e
que ostentava uma Lua preguiçosa e carcomida.
De súbito, poucos passos a frente de seus pés, o declive
transformava-se em uma escada. Os degraus mal ajambrados continuavam a
conduzir para baixo, sempre para baixo. Ali, de pé, Paulina teve
permissão de parar. Sentia os pés doridos pelos diferentes tipos de solo
a que estiveram expostos. Os olhos, com alguma dificuldade, buscavam
hadaptar-se à pouca luz, mesmo que não houvesse muito mais além de
trevas para ser visto. Os cabelos tremeluziam ao influxo de um vento
gélido, enquanto suas narinas incomodavam-se com um cheiro pesado, metálico e
indefinível.
- Você sabe que lugar é esse? - Quis saber a enfermeira, sem
soltar-lhe a mão.
Pauina não podia evitar tremer de frio, embora preferisse não fazê-lo, como se isso
denunciasse uma espécie de fraqueza, diante da outra.
- Estamos na divisa, o mais próximo possível da divisa. Para trás,
temos os aglomerados de colônias.
Você sabia de tudo isso, anos atrás, antes de
ingressar na matéria, mas pode ter esquecido.
Silêncio. O vento assoviava de forma incômoda, enquanto, mais abaixo,
pontinhos de luz, parecidos com vaga-lumes àquela distância, faziam-se
ver esporadicamente.
- Nós temos o mais próximo do céu que muitos esperam na carne.
Gozamos, sem dúvida, do melhor que se poderia esperar, de acordo com
nosso merecimento. Temos estímulos, oportunidades, amor e compreensão,
uma combinação perfeita para que possamos evoluir, ampliar nosso máximo.
Se nos dedicarmos, poderemos ter acesso a conhecimentos inimagináveis,
alegrias sutilíssimas, afetos imperecíveis e, claro, às melhores
possibilidades de crescimento na carne.
"Com o tempo, aprendemos a atravessar as imensidades com a simples
força do pensamento e, então, sentimos pelos nossos antigos algozes uma
legítima piedade, porquanto os compreendamos, efetivamente. Por trás de
todo mal feito existe uma grande dor, Paulina, e isso, em lugar de
justificar-lhes os atos, tornam-nos ainda mais tristes, posto que, para
além do mal que inflingem aos outros, recrudesce o mal que fizeram a si
mesmos.
"VocÊ está livre, Paulina, livre para fazer o que quiser, talvez,
mais livre que o que jamais possa ser, imersa na carne. Pode descer
essas escadas e inscrever-se na Sociedade dos Vingadores, e ter uma
organização com poderes insuspeitos a sua disposição, mas também pode
deixar sua humilhação para trás, despojar-se do seu ódio, ou, ao menos,
do desejo de vingança, e continuar conosco, galgando, assim, patamares
de crescimento nos mais diversos graus, disponíveis na medida do seu
esforço e espírito de sacrifício.
- Você está me pressionando? - Quis saber Paulina, agora tremendo
visivelmente, enquanto sua interlocutora a enlaçava, em um gesto tão
afetuoso, quanto suave.
- Não. - E, apesar da delicadeza, foi inflexível a voz que a
respondeu. - Estou lhe mostrando as dimensões corretas da sua escolha.
Se você quer se vingar, não ficará conosco. Descerá essas escadas, por
conta própria, e ficará aí. Fará o que te parecer justo e,
eventualmente, conseguirá alguma vantagem aparente sobre sua atual
algoz, tomando-lhe o lugar de verdulgo, concedendo-lhe o seu, de aparente
vítima.
- Excelente.
- Excelente? Ah, sim, devo ser honesta e dizer que você tem boas
chances de arrastá-la pelos cabelos, até que sua cabeça se desprenda do
resto do corpo, mas devo recordá-la de que o sangue que respingará,
também enodoará suas mãos e suas vestes. Devo acinalar que, ao fazer-lhe
tudo isso, você estará em posição de receber dela uma vingança
igualmente sangrenta, igualmente aviltante, e igualmente memorável e,
após isso, é bem provável que deseje inflingir-lhe nova série de
infortúnios. E você sabe quanto tempo isso pode durar? Dez anos? Cem?
Sei de casos que duraram milênios! E tudo porquê? Porque você acha que
é bastante inteligente e sensata em abrir mão de todas as necessidades
da sua alma, para ir à desforra, como se isso pudesse apagar o
passado, como se isso pudesse fazê-la mais feliz, como se isso pudesse
fazer com que o quarto que sonhou fosse rosa, deixe de te aparecer
totalmente vermelho de sangue, nos seus sonhos.
- Ah, você viu isso? - Quis saber Paulina, entre surpresa e
aviltada.
- Era minha função ver. Mas, por favor, não pense que estou dizendo
isso para constrangê-la. Eu só estou tentando dizer que não é assim que
você vai concertar o que quebrou, não é assim que você vai encontrar a
felicidade, não é assim que tudo isso vai terminar bem.
- E se eu descer essa escada, não poderei voltar? Você me negariam a
assistência justa?
- Ah, não... Nunca. - E, agora, ela atraía Paulina com mais
intensidade, face fria encontrando face fria, os olhos fundidos em um
só, uma vaga de impressões díspares chocando-se nas retinas, suas
palavras adquirindo a contundência de um juramento. - Nossas portas
jamais estão fechadas a qualquer um que deseje ser feliz deveras, você
sabe. O problema é que, caso opte por isso - E abrangeu com o olhar e um
gesto de mão toda a imensidade escura logo abaixo delas - ao retornar
para nós, estará ainda mais alquebrada, mais triste, mais desiludida,
mais marcada... E terá perdido ainda mais tempo. Será mais difícil, mais
doloroso o caminho de volta, e você não precisa passar por isso,
Paulina, não precisa! Sua alma está pronta para anseios mais delicados,
sua mente, no ponto de absorver conhecimentos mais profundos. Só
precisa...
- Esquecer de tudo que ela me fez?
Ao som dessas palavras, a expressão da outra cintilou por ium
instante, com uma energia ampla e desconhecida. Os braços que a
protegiam do frio ficaram tensos por um segundo. Seus olhos pareciam
capazes de incendiar gravetos com a mera intensidade das suas pupilas.
'Mas, assim como veio, passou. O intenso e firme agora soava desolado e
lasso; a veemência deu lugar a uma delicadeza moribunda, ao tempo em que
o vento as assoitava ainda com mais determinação.
- Paulina, ouve, e será a última coisa que vou dizer sobre tudo
isso: ao trancar-se naquele banheiro sombrio com os apetrechos que
julgava redentores, Clara fez sua escolha. Agora, é o momento da sua.
Essa é a sua escolha, seu momento, sua decisão. São instantes separados,
ainda que interpenetrando-se. Mas a escolha dela só vai influenciar a
sua se você quiser. Ao fazer o que fez, Clara conseguiu muito mais que
te decepcionar.
- É. Se eu descer essa escada, a culpa será dela. Transformou uma
filha que seria maleável e dedicada, em algoz pertinaz.
- Não. - E, agora, decididamente, havia mais intensidade nas suas
palavras. Um ar intistindo de autoridade e força emanava dela, e havia
um tal calor, que quase poderia aquecer o ambiente hostil em que
estavam. - Até onde eu sei, quando Clara fez aquele aborto, não te
retirou a capacidade de pensar por si mesma.
O Silêncio deslizou de uma para outra, como se fosse uma entidade
corpórea. Passou pelas duas, sentando-se nos ombros de Paulina.
- Vamos voltar? - Sugeriu Larizza, tocando-lhe no braço.
A outra não se mexeu.
- Paulina? - Chamou, e seu nome era uma pergunta e um sorriso soltos
no ar e esfarelando-se contra as pedras lá embaixo.
Lentamente, a interpelada voltou-se para a direção de onde vieram.
Juntas, começaram a galgar o declive. Uma pausa. Imobilizada sem
prenúncio, as duas contemplam-se novamente. Uma compreensão instantânea
esgueira-se de uma para outra. Silêncio. A única imagem não-verbal que a
outra registra, é um quarto cor-de-rosa fazendo-se vermelho. Primeiro,
as paredes; depois, o dedo; estranhamente, só nesse momento entram as
janelas. O piso. Vermelho sangue, vivo, intenso.
O instante multiplicou-se até o infinito. Olhos nos olhos, o único
contato físico sendo o das mãos entrelaçadas no escuro e no silêncio.
Cheiro metálico. Vento intenso, fustigando.
- É Isso realmente o que você quer? - Perguntou, e, como sempre,
aquela forma de falar como se estivessem apenas continuando uma
conversa, não soava anacrônica.
- É a minha escolha. - Confirmou a outra, não sem dor.
Lentamente, a mão livre da outra afagou-he os cabelos, poucos e
finos, macios ao toque, soando, concomitantemente, frágeis e impossíveis.
- Por que fazer o caminho mais longo, meu bem? - Quis saber, a
delicadeza fazendo anéis em torno de ambas, uma lágrima nascendo na
mente, sem, contudo, ainda atingir os olhos.
- Eu preciso. Entendo o que você falou, mas eu preciso.
Agora os segundos eram como borboletas velozes e imprevisíveis.
Todas as palavras eram supérfluas. Um instante, um abraço, o contato
visual servindo de ponte para o contato entre almas. Um último afago,
uma última frase morrendo antes de nascer. Percepções, as mentes
dialogando em uma compreensão recíproca.
- Você sabe que talvez um dia ainda possa ter aquele quarto
cor-de-rosa. Podemos trabalhar com ela, mas em frente distinta.
Prepará-la para recebê-la, para repor o que...
- Eu não quero. - E todo seu corpo ecoava a mesma opinião.
- Sabe que, ainda aí, haveria outras alternativas...
- Eu sei. É a minha escolha. Eu estou presa a isso. Eu quero
continuar presa a isso. Eu preciso continuar presa a isso. Ela tem
que
pagar, e eu quero cobrar.
Após alguns momentos, Larizza deu-lhe as costas e recomeçou a
subida. De quando em quando, olhava para trás. Ao aproximar-se do
descampado, percebeu que, lentamente, atrás de si, Paulina seguia.

O pior da manhã

Chamava-se Marina, mas era quase como se não tivesse nome.
Passava sem ser vista por aquelas ruas largas, semeadas de carros e
indiferença{,} e ignota pelas avenidas duplas e seus semáforos
intimidantes. Era só uma menina. Pés descalços, olhos arregalados,
como em constante expectativa.
Morava com a tia e mais cinco irmãos. O pai estava preso; a mãe{sem
vírgula}
sumira{sem o "se"} em um carnaval, fazia já quatro anos.
Parou. Estava cansada. Era exaustivo andar tanto. Encostou-se {a} um
muro e ficou olhando os carros que passavam velozes. Já eram seis
horas da manhã. Ainda tinha de andar tanto!
A barriga deu sinal. Estava com fome. Desde às três da tarde{sem
vírgula} do dia
anterior, não comia. Olhou as casas, imponentes e aristocratas, faiscando
no esplendor do Morumbi. Devia arriscar?
Na mente, ainda reboava a recomendação{qual?} gritada pelo interfone, no
dia anterior. Hesitou. Voltou a caminhar.
Era provável que{,} se estivesse calçada, bem vestida e penteada, as
pessoas {a} parassem e perguntassem onde estava sua mãe; entretanto, como
estivesse vestida daquela forma, era tácito que ela não tinha mãe. Pelo
menos, não o tipo de mãe com que os bons samaritanos de ocasião
desejassem perder seu tempo.
Uns quinze minutos mais tarde, a fome foi maior que o orgulho e o
medo. Parou. Ficou na ponta dos pés. Apertou o interfone. Um toque só,
para não irritar. Uma menina atendeu. Parecia ser da idade dela.
- Alô... - Disse a vozinha infantil. - QUer falar com quem?
Marina hesitou. Não, ela não queria falar com ninguém.
- Não.
A voz do outro lado também silenciou, provavelmente{sem vírgula} tentando
entender. Depois, perguntou:
- O que você quer, então?
Aquilo era fácil. Ela respondeu:
- Comida. Eu estou com fome.
A interlocutora improvisada{por que improvisada?} hesitou novamente.
Depois{sem vírgula} perguntou:
- Serve pão?
Marina abriu um sorriso:
- Sim! - Respondeu a menina, sem disfarçar a alegria.
- Eu vou levar pra você.
O interfone silenciou. Marina sentou-se na calçada, cutucando uma
ferida no pé esquerdo. OUviu-se um clique. O portão {se} abriu. Ela
levantou-se, limpando as mãos na calça.
- Oi... - DIsse a recém-chegada.
Trazia vestido um uniforme escolar e duas transinhas no cabelo
brilhante e negro. Cheirava a colônia infantil. Era gorducha, de
bochechas rosadas. Trazia{palavra repetida} nas costas uma mochila e{,} na mão, uma bandeja.
Em cima da bandeja{,} havia um pão e um copo de leite.
- Mamãe disse para você beber o leite e me devolver o copo, mas que
o pão você pode comer depois.
Em silêncio, a menina tomou o copo e bebeu. Era leite quente, com
açúcar e café. Estava gostoso. Muito gostoso.
- Qual o seu nome? - Perguntou a garota da bandeja, curiosa.
- Marina Ferreira Silva. E o seu?
- Milena Novaes Nass.
Marina estendeu o copo. Milena pegou.
- Agora eu tenho que ir para a escola. - Disse ela, entrando em
casa.
- Tá. Obrigada.
- De nada.
O portão imenso fechou-se. Marina afastou-se, feliz, acariciando o
pão fresquinho e ainda quente, adivinhando o gosto da manteiga.
E então, depois de caminhar um pouco, sentou-se em uma {amurada} para
comer. Era melhor que {previra}! Estava realmente delicioso! Tão
delicioso! Mordeu uma, duas, três vezes. O estômago agradecia. A
boca{sem vírgula}
sentia e saboreava. Comia devagar, remexendo cada bolo alimentar com
vontade.{sem reticências}
Foi então que ela {o} viu. Era alto e também tinha uma mochila nas
costas. Andava apressado. Olhou para ela e sorriu. Ela sorriu de volta,
sem jeito. Parecia ter uns quinze anos. Então ele passou por ela e, sem
acalmar o passo, retirou-lhe o pão da mão e atirou-o para o meio da rua.
Marina olhou-o, chocada. Ele riu, divertido, enquanto um carro,
indiferente, passava por cima dos restos daquele alimento.
marina quis gritar, mas ele já ia longe, fones enfiados nos ouvidos
e o passo lépido e indiferente de quem estava totalmente de bem com a
vida.

E se, outra vez...

E se, outra vez...



De joelhos no chão, o corpo derreado na direção da bacia sanitária,

Gabriela vomitava. O cabelo, de uma beleza virginal, revoluteava com

seus movimentos quase convulsos. Barulho de maçaneta, porta logo aberta.

- O que é isso, Gabriela? - mulher com o jornal na mão aproximou-se.

Ajudou-a a erguer-se com cuidados maternais.

- Mamãe - ela murmurou - É já a terceira vez.

Uma consulta médica foi marcada. Gabriela compareceu. Exames não

encontraram nada. Seu namorado de há três meses começou a preocupar-se.

Na terceira consulta, o facultativo aventou exame de gravidez. A mãe

protestou: a menina era virgem. O médico, no entanto, deu-lhe um sorriso

onde incredulidade e piedade se misturavam.

Deixaram o consultório com o pedido e as lágrimas de Gabriela.

Absurdo! Um insulto! Isso era porque eram do morro! Deveriam processá-lo.

Então fizeram, mais para ter bases para um processo. O resultado foi

inacreditável. Surpresa e tristeza em uma só medida. Gabriela protestava

sua virgindade, enquanto o namorado, agora ex, brindava-a com apodos

deselegantes. O pai não lhe dirigia a palavra; a mãe queria morrer. Além

da gravidez, havia a mentira. Meu Deus, quanta hipocrisia!

Gabriela parecia ser moça quieta, tímida e centrada. Era bonita,

mas não tanto, era inteligente, mas nem tanto assim. Beleza tinha, e não

de se jogar fora, mas havia nela um certo ar corriqueiro, uma certa

expressão que parecia dizer que ela, afinal, não era lá ninguém muito

especial. Mas tinha bom sentido de humor e longas pernas. Ia de casa

para a escola e da escola para casa. Eventualmente à missa e em visitas

à casa da avó. Todo o mundo a respeitava, ao menos, até saber da gravidez. Então começou a ser

considerada sonsa e dissimulada.

Os pais mandaram-na encontrar emprego. Ela deixou a escola e começou

a trabalhar de doméstica. Diariamente, subia e descia o morro,

enquanto a barriga crescia. Os meses passavam, como que

corressem do calendário.

Uma bela noite, era Carnaval. Toda a cidade estava animada. Turistas

vieram de todos os pontos cardeais... Pelo menos, de todos os

municípios limítrofes do lugar.

Gabriela terminara o expediente. Barriga grande, fome ainda maior. A

cidade atulhada de gente. Sentia-se mal. Os trios elétricos deixavam-na ainda mais

zonza. Um e outro atiravam-lhe olhares e palavras indelicados à sua

passagem. As lágrimas rolaram-lhe, mais uma vez. Barulho,

empurra empurra. Uma vida e meia para chegar até o morro.

Lá chegando, não podia subir. A polícia estava lá. Não era seguro

voltar para casa. Olha para um lado, olha para o outro. Pensa no que

fazer, não faz nada. A roupa molhada

denunciava seu estado. E, enquanto a água pingava, alguém se destacou da

multidão.

- Gabriela, o que você está fazendo aqui? Sai daí!

Era o namorado. Briga e mágoa esquecidas, ultrapassou a pequena

muralha humana para chegar até ela.

- Bem, vamos sair daqui! Já tem dois presuntos lá em cima.

Puxou-a pela mão. Ainda descia-lhe água. Todos os olhavam, mas,

estranhamente, pareciam invisíveis, pois ninguém lhes oferecia auxílio.

Aquele taxista fingiu não lhes ver o gesto esperançoso, à percepção de

turista evidentemente endinheirado; o ônibus negou-se a parar longe do

ponto e no lugar certo, também.

Tinham que achar um hospital. Pega um atalho, para chegar mais de

pressa. Pouco a pouco, pouco a pouco, tudo ia ficando para trás. A dor

aumentava e as forças diminuíam. Cansada, deixou-se estender no chão

de pedra.

A noite caíra, por completo. As estrelas pareciam mais

brilhantes que nunca.

Apavorado, ele colocou-a nos braços e começou a caminhar com ela,

para o hospital cuja localização perdera de todo. Nem soube

porquê, depois, seus passos o guiaram para a areia da praia. Deitou-a,

suavemente. Observou-lhe o rosto delicado e quase infantil, banhado

por aquele céu de maravilha. Toda ela era pequena, redonda, frágil,

exalando doçura e urgência. Deus, como a amava! Por que deixara ela que outro chegasse primeiro, quando

tinha, a esperá-la, o maior amor do mundo?

Os lábios entreabertos, o belo corpo contorcido na tentativa de

conter a dor. De repente, de lugar nenhum, vieram três mulheres. A aparência

não deixava dúvidas sobre sua origem. Uma delas adiantou-se, sem dizer

palavra, e, com uma rapidez espantosa, fez dos presentes uma equipe de

trabalho eficaz.

Os quatro despiram-na. E, de repente, sem aviso, uma forte luz

inundou-os. Brilhou, intensa, soberana, cegando a todos por um segundo.

E, quando cessou, já eram seis os que ali estavam. Gabriela segurava

nos braços seu bebê encantado. Seus vagidos enchiam a noite de doces

promessas. Do céu, música angélica parecia derramar-se do infinito. Os

anjos conseguiram, afinal... Ele voltara.