Conversa que não devia

Os dois sentados em um bar. Dez e meia da noite, mesas
separadas bastante para prover privacidade.
- Eu sempre soube tudo de você. - Disse Rita, alegre, depois de
expressar uma percepção sobre o marido que este acolheu.
- Nem tudo. - Contrapôs ele, o riso de antes ainda caindo pelos
cantos da boca suja de camarão.
- Ah, não? Então, diga uma coisa que eu não saiba. - Provocou, o dedo
espetado na direção dele, a expressão trocista, porém desafiadora.
- Rita, Rita... Temos já quinze anos de casado, e você acha que tem
algo que não saiba de mim?
- Mas foi você quem disse que eu não sabia tudo! Ora, vamos lá, o
que é que eu não sei?
- Você sabe tudo que há para saber.
Mais tarde, Rita não soube o que a alertou: se a pausa, se o tom.
- Mesmo? - Exigiu, olhos nos olhos, as mãos segurando a mesa.
Ele observou-a por um instante, aparentemente registrando a tensão
crescente pela primeira vez.
- Meu Deus, o que é isso? Pra que essa cara? Rita, pelo amor de
Deus, pára de criar confusão.
- Criar confusão? Depois de quinze anos de casado, existe algo que
eu não sei de você, e você ainda me diz isso, com essa cara?
- Sei lá se tem, meu Deus! Eu falei por falar. - Defendeu-se,
surpreso.
- Falou por falar? Falou por falar? Essas coisas a gente não fala
por falar. Ou é verdade, ou não é. - Teorizou, os olhos marejando-se de
pranto, os nós dos dedos tornando-se brancos pela intensidade com que
segurava a mesa.
- Nós nos conhecemos desde os doze anos. Estudamos juntos desde
então. Casamos e você sabe tudo sobre a minha vida. O que pode haver de
obscuro nisso?
- E eu é que vou saber? Eu vim pra cá propensa a criar caso? Vim?
Essa era para ser uma noite legal! Você que veio com essa história.
- Escute Rita, não há nada que você não saiba, mas, supondo que
haja...
- Há, eu sinto! - Exclamou ela, batendo o punho contra a mesa,
conseguindo que copos e garrafas tilintassem perigosamente.
- Supondo que haja... Não é concebível que tenhamos um pouco de vida
própria? Por exemplo, você não me diz o que fará com aquelas economias
que...
- Deixe minhas economias fora disso! - Exigiu em tom alto, obrigando
algumas cabeças a virar em sua direção.
- Meu Deus, calma! Não quero suas economias! Era só uma brincadeira de um segundo! - Tentou, ao mesmo tempo em
que procurava pedir, com gestos, a conta ao garsom que passava.
- Há coisas sobre as quais é proibido brincar, mesmo que seja por um
segundo. - Concluiu, secando os olhos e tentando recompor-se, enquanto,
intimamente, já tomara uma decisão.

***

O homem era daqueles que você vê na rua e não olha uma segunda vez.
Entretanto, é certo que, se chegasse a fazê-lo, surpreender-se-ia ao
comprovar que ele saberia mais coisas a seu respeito que você mesmo. Seu
apartamento era decorado com um estilo sóbrio, porém pessoal, tendo por
um de seus diferenciais a sala despida de quaisquer estofados,
repleta de almofadas vermelhas pelo chão.
Rita e o detetive Lúcio conversavam na cozinha, em um tom
completamente profissional. Ainda assim, ela desfrutava de certa
familiaridade, como se os olhos escondidos sob os óculos escuros lhe
inspirassem uma afinidade singular, como se a voz que se mantinha em um tom sempre
baixo, quase inaldível, despertasse em si confiança irrestrita.
- Então, o que quer que eu descubra a respeito de seu marido?
- Absolutamente tudo que eu não souber. - Respondeu Rita,
prontamente.
- Mas isso é bastante impreciso, a senhora há de convir.
- Impreciso? Não vejo porquê. Descubra o que puder, e vejamos quanto
eu sei.
- Devo convir que a senhora suspeita de traição? - Indagou ele,
olhando-a de uma forma que lhe soou distante demais.
- Pode ser. - Confirmou, cruzando e descruzando as pernas dentro da
calça preta e justa, o rosto voltado na direção da fruteira repleta de
frutas naturais.
- Quem sabe má conduta na vida financeira? - Sugeriu.
- É, pode ser, também.
O outro permitiu-se um suspiro contrafeito.
- Muito bem, já entendi. Entrego meu primeiro relatório na próxima
semana.
Disse isso e levantou-se, estendendo-lhe a mão. Ela também
ergueu-se, apressada, pondo em xeque a acertiva de sua empreitada. Muito
bem, supondo que não houvesse nada para ser descoberto? Ela se sentiria
uma neurótica ciumenta e perderia todas as suas economias. Como podia
ser assim, tão ridícula?
Pensou francamente em desistir de tudo, exigir seu dinheiro de
volta, alegando que tinha um distúrbio de personalidade ou uma irmã
gêmea - a desculpa não importava.
Todavia lembrou-se de que Clair, sua melhor amiga, descobriu que
estava sendo traída após consultar esse detetive e, veja bem, o esposo
dela era ninguém mais, ninguém menos que Marcelo, o estereótipo do
homem perfeito, o irresistível galã de novela definitivamente fora de
circulação, preso de amores por sua noiva eterna.
Claro que Rita sempre soubera de tudo, mas, quando Clair lhe
perguntara, preferira calar-se: jamais queria sobre si a
responsabilidade por um lar desfeito.
Então... Se ele pôde descobrir algo de errado no Marcelo, imagina no
Gustavo, seu marido?
Na primeira semana, nada inédito. Relaçõies familiares, o fato
de que ele estava procurando emprego há dois meses. O nome do banco em
que tinha conta, e até mesmo um estrato atualizado. Isso plantou na
cliente a certeza de que as relações dele eram incríveis; na segunda
semana, relatório medíocre. Seus melhores amigos de escola, junto com
seus respectivos endereços e ocupações. A cópia xerografada da sua
agenda junto com seus compromissos anotados, bem como a constatação da
hora, local e finalidade de cada um deles.
Rita estava encantada. Definitivamente, ele era melhor que Sherlock
Holmes.
Suas economias bastavam apenas para mais uma semana. O terceiro
informe, porém, foi melhor que todos os outros. Era um praticamente um
diário detalhado, apenas escrito em terceira pessoa. Possuía até
detalhes da vida conjugal dele, bem como uma série de ninharias que ela
jamais soubera, como, por exemplo, que ele praticara tiros, que era
alérgico a aves, que namorara e própria Clair, antes dela.
- Clair? - Saltou Rita, espantadíssima. - Mas como ele pôde? Ela
sempre foi minha melhor amiga?
- Bem, talvez seja o caso de perguntar, também, como ela pôde. -
Atalhou Lúcio, sorrindo.
- Como assim? Você vai defender ele, agora?
- Acho que você vem sendo realmente injusta com ele.
- O quê? - Exclamou Rita, ruborizando-se.
- É, de verdade! Veja bem, você, sem nenhuma prova concreta,
pagou-me para esquadrinhar a vida do homem...
- Pois é. - Concordou a mulher, empertigando-se, pondo-se de pé. - Paguei, e muito bem pago. Pensei que o pagamento incluísse
alguma privacidade.
- Sim, certo, mas eu realmente não acho justo que...
- Escute aqui, meu senhor, muito obrigada. Vou dizer para todas as
minhas amigas quão maravilhoso o senhor é. Agora, se não lhe devo mais
nada...
- Não, não se preocupe, está tudo acertado. - Garantiu,
acompanhando-a até a porta, fazendo um muchocho ao ser surpreendido com
o barulho causado pela força com que a mulher a fechou.
Em seguida, espreguiçou-se, observando seu reflexo através do
espelho do corredor da sala. Agilmente, retirou a peruca, revelando uns
cabelos pretos e bastos. A barba postiça escondia um rosto mais notável
que o que seu dono engendrara. A retirada dos calços nos sapatos
restaurou-lhe a altura a uma estatura inferior, portanto, mais
chamativa e um observador logo descobriria que a cor do paletó era
perfeita para dicimular um tecido adiposo extra.
Coçando o cabelo displicentemente, Gustavo pegou do envelope e
contou as notas. Em seguida, chamou:
- Clair, venha, querida. Preciso do telefone daquela transportadora.

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