Dois lados

Quão levianos são os julgamentos feitos em torno da personalidade de um
homem! De mim, discreto e cioso, dizem viciado; austero e sensato,
chamam-me imaginativo, quase louco. Todos superficiais demais para
entenderem que não sou uma coisa nem outra.
Minha mulher pela terceira vez me chama. São duas e meia da manhã e
Jogo xadrez pela Internet. Nessa noite, eu, que sou bom, sinto-me invencível.
Lanço um desafio, que é prontamente aceito. Os olhos fitos no
tabuleiro, vejo meu novo adversário jogar. NO quinto lance, penso que ele é tão bom
quanto eu; no décimo primeiro, admito-lhe certa superioridade; no décimo
quarto, penso que seja
invencível; no décimo sétimo, a partida está em suas mãos e eu cogito
seriamente abandonar o jogo ao qual fielmente me dediquei todos os
dias, desde a primavera longínqua dos meus quinze anos. "Deve ser um
grande mestre disfarsado", penso eu, recolhendo os restos mortais da
minha empáfia entre dois peões capturados.
De repente, um hiato: as jogadas ritmadas, quase automáticas, param
de chegar. Fixo-me nos segundos desmaiando sobre a tela; nada dele.
Começo a ficar preocupado quando suas jogadas prosseguem.
Entretanto, embora persistam as linhas gerais que lhe caracterizam o
estilo, a genialidade perece junto com o
tempo desperdiçado. Lance a lance, desfaz meu companheiro o brilhante
empenho das investidas pregressas. Parece mesmo que a mediocridade
encharca suas veias, toldando-lhe o raciocínio e nivelando-o aos
capivaras mais empedernidos.

A empatia envolve-me, inexorável. Que terá perturbado tão
fundamente meu adversário, guindado automaticamente à condição de ente
dileto ante a desventura que provavelmente lhe acomete?
Relembro minha esposa, surgida a pouco no umbral da porta do
escritório. Estava linda, como lhe é habitual. Vestes transparentes,
nitidamente a espera de que eu concluísse minhas partidas para envolvê-la
com meu amor. Terá meu companheiro a dádiva de desfrutar de tal raridade
na intimidade doméstica? Temo que não. Talvez estivesse ele a jogar para
aliviar-se da espera pela mulher que tardava a voltar à casa. Talvez
estivesse ela em bares, ladeada por companhias menos dignas; talvez a
pausa repentina tenha se dado porque aquela mesma mulher, dissoluta e
infiel, ligara para casa, perfeitamente embriagada, dando a saber ao
brilhante e incompreendido marido três realidades que o aniquilaram
completamente,
a saber:
1 - Ela comunicava-lhe que saía de casa.
2 - Fazia-o por não poder mais negacear seu amor por Josefina, uma
moça fantástica que conhecera nas aulas de equitação.
3 - Josefina, a propósito, estava grávida. Fizera inseminação
artificial afim de que gerassem frutos seu arrebatado e pungente amor.

Tão perdido estou em tais elucubrações, que me espanto ao ver que
meu querido amigo deixou o tempo cair. Os pontos perdidos no seu rating
dóem em mim. Lágrimas grossas enchem-me os olhos, ao ponto em que
uma necessidade extrema de aproximação humana me envolve.
Nunca me dirijo a um jogador. São adversários, nada mais.
Entretanto, hoje é diferente. Acesso o campo de mensagens e
indago-lhe se está tudo bem. Sua resposta é uma desconexão
instantânea. Apavorado, estremeço: estará ele a um passo do suicídio?

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