Fim de semana

- Eu disse que não era pra você vir - Disse ela, através do
interfone, a voz irritada e enlatada apoiando-se na proteção contra
chuva do aparelho.
- Abre a porta, Aurélia. Vamos conversar. - Pediu ele, entre surpreso
e agastado.
- Eu não tenho nada para conversar com você. - Proferiu,
demonstrando sua resolução ao depositar o aparelho no suporte, junto à
parede da cozinha.
Mateus continuou de pé, sob o Sol alegre de domingo, olhando
fixamente a casa silenciosa, como se dela pudesse vir alguma idéia ou
explicação.
Em um retrospecto automático, os lances essenciais dos últimos anos
invadiram sua mente, com a intensidade e a cor dos respectivos
momentos.
Depois de seis meses de paixão, falaram em casamento, e a idéia foi
bem acolhida por absolutamente todos os interessados. O matrimônio
realizou-se em um clube concorrido, e não faltou nem alegria, nem
auspícios promissores. De fato, o casal parecia navegar em águas
tranqüilas, mesmo quando, três meses após o matrimônio, anunciou-se a
chegada de um bebê.
Outra vez, tudo foi perfeito, ao menos, até o nascimento. Aurélia
mostrou-se uma mãe atenciosa. Atenciosa até demais. Tão atenciosa, que Mateus
desapareceu. Ao menos, no que lhe dizia respeito.
Passava dias inteiros sem lhe dirigir a palavra, praticamente, tão
absorta estava nos cuidados com o bebê.
Ele dizia a si mesmo para ser compreensivo, afinal, era uma
mudança e tanto na vida dos dois. Esperava, sensatamente, que ela
dividisse melhor sua atenção na medida em que o bebê crescesse. Bem, não
foi o que aconteceu. Não nos próximos seis anos. Na verdade, Aurélia
mostrara-se nitidamente desagradada, sempre que ele buscava qualquer
proximidade com ela e com a menina. Claro, talvez ele devesse estar
esperando até aquela hora, e então provavelmente estivesse dentro da
casa, não fora, plantado diante de umas paredes indiferentes. Contudo,
aparecera Mônica.
A jovem viera estagiar na firma em que ele trabalhava. E o que ela
tinha de mais? Nada; apenas deu-lhe atenção, riu das suas piadas de vez
em quando, reparava se ele estava bem ou não. Para ele era óbvio que
ela estava apaixonada, e uma verdadeira tragédia o fato de ser
correspondida.
Procurou coragem e a encontrou. Premiu outra vez a campainha.
Silêncio.
Nunca falaram nos sentimentos de ambos, mas ele não tinha nenhum motivo realmente
bom para rejeitar o convite de ir ao aniversário de dois anos da filha
da moça, e, realmente, não pareceu-lhe haver nada de mais em ajudá-la a
limpar a sujeira, depois que todos foram embora.
No outro final de semana, os três foram para a praia e, pela
primeira vez, ele teve a oportunidade de brincar com uma garotinha, sem
restrições.
Assim foi por quatro meses, até que ele
percebeu que Mônica e sua menina eram mais familiares a ele que sua
mulher e a própria filha.
Não que não amasse a criança. Amava. Mas a atitude da mãe sempre o
mantivera distante, chegando mesmo a obstar qualquer contato mais
pessoal.
O divórcio tornou-se imperioso. Ele talvez quisesse fazer o caminho
de volta, mas, na vida de Aurélia, simplesmente não havia lugar para
um marido.
A separação correu esplendidamente, até o ponto em que mencionaram
as visitas. Para Aurélia, a questão era simples: nada de visitas. Ao
renunciar a ela, ele renunciava à filha. Pacote completo. Acontece que,
além da vontade férrea, ela não tinha nenhum outro motivo para
justificar sua imposição, de modo que as visitas semanais eram
um fato que ela detestava, mas com o qual era obrigada a conviver.
Assim, todos os finais de semana, a garotinha estava esperando-o na
porta, vestidinho passado e com um ar solene. A relação com ela nunca
fora melhor. Pela primeira vez desde seu nascimento, eles tinham a
oportunidade de realmente interagir, o que era motivo de muito
contentamento para ambos. Os dias de domingo eram aguardados com
ansiedade pelos dois. E era para mais um daqueles dias que ele estava
ali, o Sol magnífico convidando-os para a praia, para mil e uma
alegrias. Mas, por um motivo misterioso, Aurélia decidira que ele não
podia levar a menina.
Tocou outra vez. Nada. Uma segunda vez. Demorou mais em retirar o

dedo.
- O que é que você quer? - Perguntou ela, irritada, a voz alterada
agora ultrapassando a proteção contra chuva.
- Aurélia, não faz assim. Abre a porta, vamos conversar...
- Não temos nada para conversar com você.
- Meu Deus do céu, Aurélia, por que fazer is... - O aparelho sendo
lançado contra o suporte interrompeu-lhe o argumento.
Primiu o dedo, outra vez. Ela atendeu com um palavrão.
- VocÊ está sendo ridícula, Aurélia. Eu tenho a chave, mas não
queria entrar contra sua vontade.
- Então não entre! - Concluiu, interrompendo a comunicação uma vez
mais.
Após pequena hesitação, ele voltou ao carro e retirou a chave do
porta-luvas. Com os passos retornando à frente da casa, ouviu gritos e
choros confusos, partidos de dentro. Para ele, foi o incentivo que
faltava.
Girou a chave e adentrou pela garagem, alcançando o quintal , a
varanda e a porta da sala, que já estava aberta.

A cena não precisava de explicações. Marcela era empurrada em
direção ao seu quarto, enquanto mãe e filha gritavam, alteradas.
- Entra e fica quieta. - Ordenava Aurélia, o rosto vermelho pela
cólera, fios esparsos do cabelo ruivo escapando do elástico.
- Eu não vou. Eu quero ir com meu pai. - Contrapunha a menina,
enquanto as lágrimas rolavam, desoladas, pelo rostinho miúdo.
Sem ainda ter divisado o ex-marido, Aurélia resolveu a questão,
agarrando a garotinha por sob as axilas e carregando-a para o
quarto, enquanto ela gritava e chorava, as palavras sendo amassadas pela
torrente de lágrimas:
- Hoje é dia do meu pai. Eu quero ficar com meu pai. - Repetia ela,
em uma ladainha impotente.
Mesmo a porta trancada, não pôde abafar-lhe os gritos por completo.
Quando a mãe deu às costas ao quarto da filha e voltou pelo corredor,
encontrou Mateus, poucos metros diante dela.
- Eu disse que não queria que você entrasse. - Disse ela, num
sussurro tenso.
- Por que você está fazendo isso, Aurélia? - Perguntou, tristeza
trocando de lugar com a determinação.
- Eu não tenho que te dar satisfação. Não sou mais sua mulher.
- Está certo. Só que Marcela ainda é minha filha. Sempre vai ser. -
Arriscou, a cabeça erguida contra ela, confuso, mas também aviltado.
- Escute, Mateus, por que você não esquece a menina? Pelo amor de
Deus, mesmo sua namoradinha tem uma filha. Deixe Marcela para mim. Ela é
tudo que me resta.
- Você fala como se a menina fosse uma cristaleira, uma coleção de
discos... Ela é uma pessoa, e precisa de pai e mãe.
- Ela não precisa de um pai como você. Ela precisa só de mim.-
Concluiu Aurélia, os lábios apertados, as lágrimas grossas abrindo caminho por seus olhos
castanhos.
- Como assim, um pai como eu? Eu não sou horrível.
- Não. - Concedeu ela, irônica, tentando, debilmente, enxugar o
rosto com o dorso da mão. - Você nos abandonou. Você foi embora, foi
indo, foi indo e nos abandonou.
- E você fez qualquer coisa para me manter por perto? - Perquiriu
ele, a voz gradativamente alteando-se.
- Você que se afastava da gente, você que nos ignorava, e eu que
tinha que correr atrás? - Desafiava.
- Bem, só estava em questão o seu casamento.
- Estava em questão a felicidade da minha filha, e ela parecia muito
bem sem você.
- Ela não me pareceu bem, agora. - Argumentou, irritado.
- Aquilo foi um capricho. Passa logo. Ela está com a mania de ser
intransigente.
- É um capricho querer ficar perto do pai? - Indagou, as forças
divididas entre continuar apelando para a razão da mulher e não
sacudi-la pelos ombros.
- Ela não precisa de pai. Eu nunca tive um, e fui muito feliz assim,
obrigada.
Mateus creu ver um vulto refletido no vidro da janela,
mas não deu atenção.
- Você pretende que isto se torne um hábito?
- Eu nunca disse que queria essas visitas.
Um lampejo de fúria genuína lambeu suas entranhas. Fechou os olhos, tentando conter a irritação. Em milésimos de
segundos, revisou todas as opções a seu dispor. Podia desacordar a
mulher e levar a filha dali, o que lhe traria problemas, caso Aurélia
continuasse com aquela idéia absurda; podia ameaçá-la de alguma coisa,
impor-se como homem, o que certamente angariaria os mesmos ônus da
primeira postura; chantagem emocional não costumava funcionar com quem
somente
enxergava as próprias penas.
Recapitular temporariamente pareceu-lhe a única alternativa válida,
embora fosse a menos desejável. Perguntou-se o que Marcela acharia de
tudo aquilo. Ficaria contra o pai? Pensaria que fora traída? Estaria
ela, na inocência do seu coração, esperando que ele a deixasse sair do
quarto e partilhar com ele um maravilhoso dia de Sol?
Pensou em procurá-la na escola, para conversar. Aurélia não
precisaria saber. Era o pai da menina, não era? Odiou-se por planejar
ver a própria filha escondido. Aquela atitude toda era tanto humilhante,
quanto inaceitável.
Sem, entretanto, encontrar melhor possibilidade para o momento,
dirigiu a mulher meia dúzia de expressões pertinentes e saiu porta a
fora, fechando o portão daquele lugar que há poucos meses julgara que seria seu
lar para sempre.
Ao aproximar-se do carro, notou um rostinho conhecido contra o vidro.
Abriu a porta, tendo quaisquer expressões retardadas por um
imperativo gesto que ordenava silêncio.
Os seus olhos encararam aquele rosto que era tão parecido e
diferente do seu. Uma mistura que, em um passado que não ia tão longe,
julgou ser aprova máxima da união e do amor.
- Vamos, papai! - Pediu a menina, com ar gravíssimo.

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