Através do retrato

As vozes ficaram mais distantes depois que ele fechou a porta.
Não queria ouvir e, ainda assim, distinguia o contexto por
detrásda madeira, não preparada para esses revezes.
Na escuridão do quarto fechado, Telmo ouvia e tremia, esperando que
seu nome não fosse sitado, esperando não ser o culpado,esperando não
precisar serjulgado também.
Dentro de poucos instantes, porém, o instrumento saía da caixa.
Duas, três notas preliminares, e todas as outras que estavam
encarceradas fugiram de seu peito, desaguando em cascatas ritimadas
pelas cordas suaves e obedientes. A música deslizou assim para o quarto,
alheando-o da discussão lá fora, do mundo que ruía sem jamais ter
conhecido a solidez. As lágrimas escorreram em determinado ponto, mas ele
não se importou. Abraçando-o como a solicitar consolo, derramou sobre o
instrumento dócil toda sua confusão, toda sua doçura, toda sua urgência
de carinho não satisfeito, de ambiente adequado ao florescimento que
sobrevivia apenas nas suas canções.
Ao fim, exausto, pegou do caderno de pauta e escreveu freneticamente.
As escalas por fim o redimiram e o levaram até o céu, suspenso em um
universo de notas perfeitas, harmonias diáfanas e sonhos de abranger
todo o mundo com a suavidade dos tons.
Lá fora, porém, o Universo continuava inconsciente do que se passava no
seu quarto fechado. Os soluços da mulher sessaram abruptamente e sobre
eles pairou um silÊncio congelado . Em seguida, passos vibraram
sobre os degraus, os pés aproximando-se do seu santuário. O caderno de
pauta aberto, as mãos hábeis surpreendidas no meio deum acorde
perfeito, quando a luz de fora foi finalmente revelada.
- Não, não precisa parar, filho. - Disse o pai à soleira, suado e
trêmulo, segurando uma máquina digital e um tripé .
Organizando os objetos que trazia com ele, ajustou
o timer e aproximou-se do garoto que, tentando fugir à realidade, seguia
executando a canção que compusera.

O flash vibrou e os capturou aos dois. A Máquina foi retirada por
seu dono, enquanto os pés que o trouxeram rumavam para baixo.
No quarto, Telmo continuou suspenso em seu mundo, certo de que, como
no passado, ele o protegeria do medo e da desilusão. Antes desse,
enfrentara vários outros estágios, inclusive o da rebeldia, da
intervensão inútil, do ódio indiscriminado. Agora, porém, após o
décimo quinto aniversário, sentia-se mais apaziguado, mais preso do
desejo de não saber que de qualquer outro impulso.
Adormeceu, pois, sobre seu refúgio, sendo acordado só mais tarde pelos
raios que entravam-lhe pela janela aberta. O frio despertou-o como
poucas coisas poderiam fazê-lo. A casa, porém, não estava quieta.
Apenas depois percebeu que fora um grito, e não o Sol que o acordara.
Rastejando para fora do quarto, encontrou-os todos na sala: a
empregada, o vizinho e o corpo mutilado da mãe.
O terror foi tanto que lhe obstruiu as lágrimas. Parado no cômodo
agitado, tal foi seu silêncio que tardaram para adivinhar sua presença.
Quando tal aconteceu, um desconhecido segurava a máquina que
estivera sobre o pedestal. Na tela pequena, estava a foto de pai e
filho, capturados naquele instante de intimidade fabricada.
Peritos examinaram data e hora da fotografia. Era estranhamente
parecida com o horário aproximado do assassinato. Afinal, que significava
isso? Seria seu companheiro inocente ou culpado?
De pé no ambiente agora repleto, espantava-se de ninguém ter lhe
dirigido qualquer questão. No silêncio de sua mente treinada pela música
para perceber nuances, telmo lembrou-se de ter visto a culpa nos olhos
do pai, a mesma culpa que o fitava através do retrato, olhos que fingiam
compreender sua música, sem jamais terem tentado dela se aproximar.
"Talvez ela também o tivesse salvado" - congecturou o garoto, antes
de sentir-se arrastado para a escuridão.

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