Conversando com Deus

Conversando com Deus

Chegou, sentou e esperou. Ao ser interrogado sobre suas motivações,
retrucou que precisava de um laudo psiquiátrico. Quando o outro quis
saber do porquê, atalhou que estava prestes a casar e, portanto,
necessitava daquilo .
Problemas anteriores? Não, de modo algum. Sempre fora um sujeito
correto e razoável, em todos os sentidos. Mas agora pretendia casar e o
laudo se fazia indispensável. Ao ler a pergunta nos olhos do psiquiatra,
explicou:
- não quero que minha futura esposa se sinta insegura a meu
respeito. Quero lhe dar a certeza absoluta de que não tenho qualquer
anomalia .
- E por que ela suspeitaria da sua saúde mental a ponto de precisar
de um laudo? - quis saber o médico, parecendo, pela primeira vez, estar
ali.

- Um sujeito não se pode casar guardando da mulher um segredo tão
importante sobre si mesmo, tal qual é o da sua verdadeira natureza,
pois não?

O outro assentiu, com um olhar de nada na ponta das pestanas
espessas.
- Qual sua verdadeira natureza?
Tartamudeou um pouco antes de falar. Enquanto isso, o médico o
olhava de forma mais intensa. Tratava-se do indivíduo que se poderia
visualizar em qualquer situação. Um corpo comum e bem proporcionado, mil
faces poderiam caber para aqueles cabelos negros, e mil expressões
fisionômicas nos olhos castanhos e queixo voluntarioso. Contudo, de tão
comum, tornava-se singular. As mãos grandes e quadradas pousadas
sobre a mesa entre os dois, não despertavam qualquer imaginação,
especialmente ao sujeito sem imaginação que as fitava, enquanto
esperava uma resposta, que, de repente, parecia custar demais a
chegar.
- Ela não tem mais muito tempo, você sabe. Sei que pode senti-lo.
O médico surpreendeu-se. Em um átimo, passou a considerar a
possibilidade de ter diante de si um indivíduo louco, deveras.
Buscou um vislumbre de insanidade por detrás dos olhos
castanhos, apenas para descobrir que dentre todas as expressões que
podiam abrigar, a loucura estava fora de cogitação.
- Do que está falando? - Indagou, procurando, sem muito êxito,
dissimular a confusão que lhe ia no íntimo.
- Da sua mãe, naturalmente. - Atalhou o outro. - você sabe que a
vida escoa dela como a água derramada sobre a areia. Sabe que, em pouco
tempo, não restará mais tempo, apenas recordações e a dor do que deveria
ser feito e não foi, do que deveria ser dito e ficou preso para sempre.
O outro quis falar, mas voz não tinha. Como podia um estranho que
pleiteava um laudo saber da sua mãe e dos seus mais recônditos
sentimentos?
Entretanto, o outro continuou, aparentemente insensível ao que
provocava ao seu redor:
- Quanto ao divórcio em marcha, é tão certo que compreendo suas razões, quanto
que aconselharia uma observação mais detida sobre a real gênese do
contexto.
Ao que aparentou, apenas então o facultativo recuperou a voz para
perguntar:
- Quem você pensa que é? - Exigiu, a cólera e a surpresa
mesclando-se no seu íntimo.
- Eu não penso; eu sou. Sou Deus.
Ficou provado que das coisas mais instáveis de tudo aquilo era a
opinião do médico quanto ao homem que tinha diante de si.
- O atestado... Tem alguma ligação com isto?
- Toda. - Respondeu-lhe, enfático.
- Você se acha Deus...
- Creio não haver me explicado corretamente. Eu sou Deus.
- Deus... O "Lá de cima"?
- Eu crio e dou norte, razão e destino. Começo e termino, corto pelo
meio ou acrescento mais vida.
- Você quer me dizer que é Deus e quer de mim um laudo em que eu
assine sua saúde mental?
- Precisamente. - Confirmou o outro, com a mais natural das
expressões.
- Escute, isto só pode ser uma brincadeira.
- Jamais. Jamais brincaria com qualquer questão que se
relacionasse à mãe e à esposa de quem quer que fosse, menos ainda com as
de alguém a quem vim pedir um favor.
- Deus me pedindo um favor, casando-se e dando palpites sobre meu
relacionamento filial e conjugal... Decididamente, há louco para tudo.
- Pode alguém ser louco por perceber os sentimentos dos demais e
afirmar-se Deus? Acaso poderá enquadrar-me em algum quadro patológico
conhecido? Acaso não terão, ao longo dos tempos, chamado louco todo
aquele a quem não logravam compreender na perfeição? Existem doentes e
doenças, é verdade, mas para avaliar corretamente , há que se ter as
mais mínimas provas. Que provas tem você de minha inadequação à
sociedade ou da minha incapacidade de estar dentro dela como pessoa
normal?
Todas essas coisas foram ditas de forma sumamente digna, sem que a
autoridade passasse desapercebida. Agora era ele que exitava, mais pelo
que o outro lhe provocava, que por quaisquer questões médicas.
- Se Deus viesse à Terra, jamais se casaria.
- Com que então, sabe da natureza íntima do criador?
- Hora, ninguém o sabe. Mas é certo que não se casaria. Ele não
precisaria disso.
- Não? Hora, por favor! Não queira parecer que sabe o que é estar
aqui, sendo-se Deus! Uma compreensão de tudo e de todos, sem
possibilidades reais de ajudar, até que cada um decida, a seu tempo, que
está cansado de andar por onde esteve; desejar viver anônimo e oculto,
sem a companhia dos que se lhe afinizam com os propósitos mais
intrínsecos! E
o desejo de criar, a febre de fazer do nada alguma coisa, porque não
suporta ver o universo semeado do que poderia ser chamado de coisa
nenhuma! Não me diga que conhece das noites em vigília e dos dias
intermináveis!
Não venha me dizer que entende! Compreenderia, acaso, a dor da solidão
sentida por aqueles que desejam seguir um rumo distinto do da maioria
sendo, por isso, essencialmente mal compreendidos, quase em toda parte?
O relógio sobre a mesa marcava o tempo que passara. Do outro lado da
porta, outros pacientes aguardavam. O Dr. Olavo Freitas lembrava, sem
custo, aquelas sensações, ainda que jamais se supusesse Deus.
Permitiu-se cogitar da enormidade de seus padecimentos caso se cresse
divino. Certamente, se descobrisse a mínima afinidade, o mínimo gesto de
compreensão, não hesitaria em unir-se-lhe para sempre, se tal fosse um
desejo partilhado.

- Se é Deus, faz um milagre. - Sugeriu, sem pensar muito no que
dizia.
- Já o fiz. Você passou da burla à dúvida.
- Refiro-me a algo mais contundente, como dividir as águas, caminhar
sobre elas ou fazer parar a Terra.
- E então acreditará que sou um magnífico prestidigitador. Receio
que não. Também receio que seus demais pacientes o aguardem ali fora, e
que cada um deles tenha pendências ao saírem daqui. Não devo, com meu
pedido, por mais essencial que seja para mim, obstar a que continue seu
trabalho.
Levantou-se educadamente, estendendo a mão ao facultativo que,
surpreso, custava a compreender a mudança de disposição do outro.
- Visite-a, quando sair daqui, independendo de sua decisão. É livre
para agir como melhor convenha. Isto não será por nós, mas por sua
esposa.
Com estas frases aparentemente incompreensíveis, deu-lhe as costas e
saiu, fechando a porta delicadamente, ao passar.
Da gaveta da mesa, uma folha deslizou para fora. Habilmente foi
preenchida e assinada. O carimbo pousou prontamente, dando-lhe o
valor esperado. Da mão do homem, ela viu a porta sendo aberta. O outro
esperava, dizendo qualquer coisa à secretária. Pelas mãos do homem,
mergulhou em um envelope pardo, de onde nada mais pôde ver.
Nos tempos de escola, elas eram muito amigas. Pareciam mais irmãs
que nora e futura sogra, de forma que a união conjugal mais se
assemelhava a um trio fraterno a executar divina harmonia, em que cada qual sabia da sua
importância e lugar na mesma proporção em que enxergava e aceitava o dos
demais.
Assim fora por longos anos, felizes e prósperos, em que o amor se
fazia árvore frondosa e acolhedora. Um dia, porém, inexplicavelmente,
sogra e nora se separaram, e sem mais, a mãe do facultativo foi perdendo
o acordo de si. Da confusão passou a uma loucura inequívoca e, tão logo
ela foi conduzida a uma clínica, seu casamento perdeu a fluência. O trio
não soube tornar-se duo. Sentados no sofá, não tinham o que dizer.
Deitados na cama, a noite fazia-se vazia de um desejo que não chegava.
Acomodados no carro, as ruas e estradas passavam por eles, sem que
qualquer palavra lhes passasse pelos lábios. Ele podia lembrar-se de
tudo isso, enquanto o automóvel rodava pelo asfalto regular até o
hospital psiquiátrico.
Conduzido pelo enfermeiro de sempre, com os uniformes quase
imutáveis passando por eles, chegou até o quarto em que a mãe jazia.
Sedada e inerte, percebia-se, mais uma vez, de forma quase tangível, a
vida se lhe escapando apesar dos remédios endovenosos.
De súbito, seus olhos se abriram e uma compreensão inexcedível
espelhou-se neles, como há anos não se via.
Ela então falou-lhe, em tom claro e baixo, as lágrimas quentes e
redentoras rolando-lhe pela face macilenta. E do relato veio a gênese de
tudo, e da gênese, a capitulação. Do conjunto dessas coisas veio o perdão, e com ele,
a paz. As mãos dadas no silêncio do quarto asséptico deram-lhe coragem
de falar o que jamais dissera. E no diálogo pacífico e sincero, pôde-se
sentir de forma inolvidável a presença de Deus. Palavras contidas com
custo saltaram em turbilhão, procurando reter a vida que continuava a
esfumar-se como que fluísse de um conta-gotas imparável, até que a
última gota tombou e a mão ficou inerte sobre o leito.
Pelo diálogo esclarecedor e pela verdade revelada, o processo
de divórcio foi suspenso. De mãos dadas, no cortejo fúnebre, ele pôde
ver um casal a sua frente. Ela, uma jovem comum, como aquelas que eram
vistas em toda parte; ele, tão vulgar que fazia-se singular. Um
tremor seguiu o brilho de reconhecimento dos olhos do médico.
- Você os conhece, meu bem? - Perguntou-lhe a mulher, em um
sussurro.
Mas a resposta não foi necessária. Encaminhando-se aos dois, o homem
estendeu-lhe a mão.
- Veja, Amália, este é o médico que assinou o laudo que te
apresentei quando te disse que era escritor.

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